Eu andava triste com aquela lamentosa história de covid. Não aguentava mais ficar em casa: só eu e o marido, um olhando para a cara do outro, cada qual no seu mundo e na sua televisão. Eu já tinha atravessado três décadas de casamento com o mesmo marido, fora a década de namoro. E a rotina de ficar em casa ao lado dele, sem a possibilidade de sentir saudade, parecia uma prova de fogo para aquela relação senil. Pensei que seria melhor eu ir comprar uma barra de chocolate para suportar a barra da solidão a dois. Entrei no carro com os lábios trêmulos. Na verdade, tínhamos acabado de brigar por nada. E o chocolate cairia bem. Dizem que o chocolate tem o poder de liberar endorfina no cérebro, propiciando uma sensação de prazer e melhorando a nossa disposição mental. Endorfina é um hormônio conhecido como droga da felicidade, porque serve para aliviar nossas dores físicas e emocionais. Era tudo de que eu mais precisava.
Não fui muito longe. Só na farmácia. Longe para umas pedaladas e caminhadas, mas bem perto para um passeio de carro. Em lá chegando, aproveitei pra comprar um remédio pra dormir, conforme me prescrevera a minha endócrina. De repente caiu uma chuva torrencial, exatamente no momento que eu me dirigira ao carro. Que falta de sorte! O pneu do carro também tinha furado. Eu, toda molhada, só tive tempo de procurar a chave do carro dentro da bolsa, quando um guarda-chuva bem grande cobriu-me a cabeça e o corpo. Olhei de lado. Era um jovem de aproximadamente 30 anos que, gentilmente, acolheu-me debaixo de seu protetor de chuva.
Era tempo de covid, e eu não poderia ficar tão perto de uma pessoa, ainda mais estranha, mesmo de máscara. Ademais, quem poderia garantir que aquele possível homem bom não estaria ali para me assaltar ou mesmo fazer qualquer coisa de ruim comigo? Com a chuva torrencial, não havia uma viva alma à qual eu pudesse pedir socorro, caso aquele meu suposto protetor virasse um homem mau.
– Não precisa ficar com medo! Só quero ajudar – disse como se adivinhasse meus pensamentos.
– Desculpa! Nem sei de onde você veio. Eu estava na farmácia, e a chuva me pegou de surpresa na hora da saída.
– Tudo bem, senhora! Não precisa temer. Sou do bem. O pneu do seu carro furou. Posso trocá-lo, se quiser.
– Quer dizer… eu…eu… eu posso ligar para o meu marido e ele vem me socorrer – titubeei, gaguejei, não sabia o que dizer:
– Já estou aqui! – contra-argumentou.
– Mas…ainda chove – ponderei.
– Podemos ficar dentro do seu carro, enquanto a chuva cessa? – questionou o desconhecido.
Que resposta eu daria a tanta insistência? Eu estava sem criatividade e sem presença de espírito:
– Claro!… – abri a porta. Entrei.
O desconhecido deu a volta, entrou, sentou-se no banco do carona.
– Esperei muito tempo por este momento – falou com certo mistério no olhar.
Fiquei trêmula. Foi então que refleti sobre o mal que causara a mim mesma. Por que coloquei dentro do meu carro um estranho em circunstâncias tão desagradáveis?
– Como assim?!…. Eu não o conheço! Nunca o vi! Você já me conhece? – indaguei nervosa. As mulheres idosas, como eu, sempre eram alvo de bandidos. E eu estava ali, totalmente indefesa, vítima do meu próprio vacilo.
– Não se lembra de mim? – ele insistia.
– Como lembrar de você? Acabamos de nos conhecer, você me deu carona em seu guarda-chuva. A chuva não para de cair, então você me pediu pra entrar no carro…
Interrompeu-me:
– Calma! Não quero assustá-la. Não precisa ficar nervosa. Eu só queria falar com você, permitir que você se lembrasse de mim…
– Como vou lembrar de alguém que não conheço, que nunca vi?! É algum amigo dos meus filhos? Quem é você?!… – exaltei-me.
– Mas já nos conhecemos. Foi em 1922, na Semana de Arte Moderna em São Paulo. Lembra?
– Semana de Arte Moderna? – arregalei os olhos sobressaltada – Na Semana de Arte Moderna eu ainda nem tinha nascido. Que loucura! Você, com essa idade de fedelho, também não tinha nascido.
– Como não? – questionou tristonho o interlocutor.
– Você está de brincadeira ou é um louco que fugiu do manicômio? – perguntei apavorada.
– Sou apenas um homem apaixonado que perdeu seu grande amor e, desde então, vive à sua procura pra voltar a ser feliz.
De repente, senti um perfume de flores do campo no interior do carro. Aquele cheiro penetrava em minhas mais profundas lembranças; meus olhos, de repente, viraram palco de imagens inusitadas: o grande Teatro Municipal de São Paulo cheio de gente jovem, aquele encontrão na escadaria de entrada; a conversa sobre poesia; a afinidade pela arte. Sentamos lado a lado na plateia…
– No saguão, foi instalada uma exposição de pintura e escultura de Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret. Lembra? No dia 15 foi o mais apaixonante pra ti: a declamação de Os Sapos, de Manuel Bandeira, por Ronald Carvalho… – falava o desconhecido. Fiquei em êxtase, reproduzindo os versos de Bandeira:
– ‘Enfunando os papos, saem da penumbra, aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra…”
– “Em ronco que aterra, berra o sapo-boi: ‘meu pai foi à guerra!’ ‘Não foi!’ – ‘Foi’ – ‘Não foi!’ – o desconhecido continuou a minha declamação.
– Eu sempre fui apaixonada por Manuel Bandeira. – confidenciei.
– Você se lembra do meu nome agora?
– Monique! – respondi com a voz presa na garganta.
E ele continuou em viva voz:
– Tu eras Gustavo. Eu gostava de Cecília Meireles; tu, de Bandeira; eu gostava de Anita; tu, de Di Cavalcanti. Mas aquelas diferenças eram mais semelhanças: gostávamos os dois de arte: eu mais de pintura; tu, mais de poesia. Ambos éramos apaixonados por música. Durante aquela Semana fomos tão felizes. Mas havia um empecilho….
– Sim! Eu era noivo – respondi. Tudo agora estava perfeitamente lúcido em minha mente.
– Ela era Virgínia, que se suicidou quando terminaste o noivado com ela. Vocês iam se casar em agosto de 1922.
– Ela se suicidou em 15 de abril daquele ano – completei.
– Era difícil viver um grande amor, depois de tamanha tragédia, mas Deus nos permitiu que fôssemos felizes por eternos dez anos.
– Sim! Fomos tão felizes!… – comecei a chorar.
– “Não te doas do meu silêncio. Estou cansado de todas as palavras. Não sabes que te amo? Pousa tua mão na minha testa. Captarás, numa sensação inefável, o sentido da única palavra essencial: o amor!’. Poesia de Manuel Bandeira, foi a última que declamaste pra mim no teu leito de morte. – confessou.
Meus olhos encachoeiraram-se, lágrimas transbordaram sobre o meu rosto. O dia daquele encontro parecia o dia da separação em que tive que deixá-la cheia de vida para interromper minha felicidade.
– Desde aquele dia, nunca mais amei ninguém e, até então, te procuro por todas as minhas reencarnações. Morri dois anos depois. Reencarnei após três anos. Te procurei demais. Não te achei, morri de novo de solidão em 1958. Reencarnei em 1990. Dizem que quando morremos, esquecemos nossas vidas passadas. Mas eu nunca te esqueci. – confidenciou o jovem ao meu lado.
– Não sei o que aconteceu. Eu só sei que nasci em 1959, um ano após tua última morte. Nunca consegui lembrar de nada. Mas sempre sentia muita nostalgia quando eu lia Bandeira, quando sentia o doce perfume de flores do campo. Mas agora, tudo veio à tona. Contudo, os empecilhos permanecem: a nossa diferença de idade, meu casamento… Já não somos os mesmos…. Tu eras a mulher; eu, o homem…
– Mas eu ainda te amo. Te amo muito. Ainda me amas? – perguntou com um brilho de tristeza e paixão no olhar. Pensei no marido que eu deixara em casa. Tão complicada aquela sensação de duas vidas estranhas e distintas. Mas só então percebi como era eterno e sincero aquele grande amor. Fui verdadeira:
– Sim! Também te amo muito! – abracei-o cheia de saudade. Beijei-o como nunca beijara alguém. Foram minutos de entrega e paixão.
– Então? És capaz de deixar novamente Virgínia? – ele perguntou.
– Virgínia? – questionei espantada.
– Sim, querida! Teu marido é a tua ex-noiva Virgínia. Já pagaste a dívida que tiveras com ela. Agora é a hora de voltares pra mim.
SOBRE A AUTORA – Wanda Cristina da Cunha é escritora (poetisa, cronista, contista, romancista), radialista, jornalista, professora, compositora. Nascida em São Luís do Maranhão em 05.06.1959, filha do escritor, professor e jornalista Carlos Cunha e da professora Plácida Jacimira Cabral da Cunha. Formada em Comunicação Social (Jornalismo) pela UFMA e em Letras pela UEMA; especialista em Língua Portuguesa e em Comunicação e Reportagem. Especialista em Teoria Literária e Produção de Texto pela Faculdade Batista de Minas Gerais; especialista em Educação Musical e Ensino das Artes pela Faculdade Batista de Minas Gerais. Licencianda do Curso de Música Pela Uniasselvi. Nove livros publicados. Já conquistou vários prêmios literários e musicais.