Ela desceu do avião. No aeroporto, ninguém a esperava nem mesmo as lembranças. Tudo estava diferente. A cidadezinha do interior de sua infância era uma ilustre desconhecida, com ares de cidade grande. E o que Maria da Luz foi fazer ali, naquele cemitério de emoções? Tudo era estranho, até que chegasse à rua da ladeira onde tinha nascido. A casa, com duas janelas e uma porta na fachada, precisava de reformas. Havia teia de aranha por todo canto. A porta de entrada rangia as dores da idade. Engraçado! A cidade tinha crescido, mas a casa em que vivera só envelheceu. A sala empoeirada. Atravessou o corredor: passou pelo quarto dos pais. Passou pelo quarto que fora seu e da irmã caçula. Passou pelo banheiro… Na cozinha, sentiu um cheiro forte de café.
– Tem pão quentinho com manteiga – disse sua mãe.
Não houve abraços nem cumprimentos de chegada. A impressão era a de que nunca tivera saído dali.
O pai, na cabeceira da mesa, nem levantou a cabeça. Só pediu o adoçante. Tudo ainda amargo. A mãe volta a quebrar o silêncio:
– Hoje tua irmã faz 20 anos de falecida. Vou ao cemitério. Me acompanhas?
Luz fitou os olhos sem brilho de sua mãe, semblante amarrotado de rugas, faces cheias de caminhos sem volta, cabelos cheios de fios de luares amanhecidos em vigília.
– A senhora quer que eu vá? – perguntou como se respondesse.
– Tanto faz! Perguntei por perguntar. Já faz tanto tempo que acendo minhas velas sozinha, que rezo sozinha, que choro sozinha….
– Talvez seja a hora de deixar a solidão de lado – comentou Luz.
A mãe deu um sorriso sarcástico:
– Passaste vinte anos ausente e vens querer tirar de mim a única companhia que eu tive durante todo esse tempo?
– Chega! – gritou o pai, dando um murro na mesa.
– Vivi todo esse tempo ao lado de uma mulher sem alma, defunta, finada em suas emoções… E agora vocês vêm falar de solidão! – era um marido e pai bravio saído do silêncio.
– Por que um não deu um pouco de companhia ao outro? Por que um não deu o ombro ao outro? – indagou Luz.
Interrompeu o pai:
– E por que não deste a tua mão para esses dois pobres velhos desesperados que perderam sua filha caçula por tua causa?
– Não digas isso, Alfredo! – Retrucou a mãe – Luz não teve culpa de nada.
– Teve, teve sim! – Continuou o pai – Sua irmã só tinha 17 anos, cheia de sonhos…
Luz interrompeu:
– Eu só tinha 20. Eu também tinha sonhos.
– Tinha, sim, um namorado libidinoso que seduziu sua irmã… Só uma menina. – continuou o pai.
– Ele não a seduziu. Ela que ficou tresloucada de amor por ele! Ela sempre quis tudo meu: minhas bonecas, meu melhor vestido, meu sapato alto…
– Não macule a imagem de sua irmã! – a mãe gritou aos prantos.
Luz fechou os olhos em lágrimas:
– Marcelo me amava, mãe. Ele gostava de Luzia como se ela fosse sua irmã caçula. Mas Luzia fantasiou tudo.
– Não é mais tempo de levá-la ao tribunal. De vítima, você quer levá-la a sentar-se no banco de ré, logo você!… – o pai argumentou.
– Como assim, pai? Por que vocês me odeiam?
O pai dirigiu-se à filha rispidamente:
– Você foi a culpada de ela ter morrido.
– Eu, culpada? Como assim? Ela me disse que amava meu noivo, e eu disse a ela que aquilo era uma ilusão, que eu e Marcelo estávamos em vésperas de nos casarmos.
– Você foi egoísta, fria!…. Incompreensível. Ela era apenas uma menina apaixonada que mal sabia o que era o amor, mas que precisava muito ser amada. – disse o pai.
– Você também pensa assim, né, mãe? Vocês acham que eu matei Luzia por tentar dizer a ela que aquela paixão era um devaneio infantil. – concluiu Luz.
– Não! Não penso assim. Mas você, na condição de irmã mais velha, poderia ter ponderado. – a mãe opinou.
– Você a matou. – sussurrou o pai.
– O quarto era dela, minhas roupas… O amor de vocês era dela. Ela queria viver a minha vida. Será que vocês não entendem? Ela queria a minha vida, o meu noivo, as minhas amizades… A minha vida!…
– E por isso você a matou? – Insistia o pai.
Os olhos de Luz encheram-se de lágrimas. Seu grito ecoou em toda a casa:
– Eu não a matei. Será que não entendem? Ela se suicidou. ELA SE SUICIDOU…. – gitou.
Alguém bateu à porta da frente, em ritmo de desespero. Maria da Luz correu para abri-la. Um homem de meia-idade, cabelo grisalho. Olharam-se profundamente.
– Luz? Você voltou!
Luz chora copiosamente nos ombros de Marcelo:
– Eles insistem em dizer que eu a matei. Eles continuam me culpando pela morte de Luzia.
Marcelo acaricia os cabelos encaracolados de Luz, amparando-a num abraço quase fraterno:
– Eles já não a culpam. Você se culpa. Você sempre se culpou e me culpou. Foi embora, me deixou sozinho na dor. Luzia morreu, mas ficou entre nós, nos separou.
– Meus pais ainda não me perdoaram.
– Já a perdoaram, sim! Sentiram sua falta. Eles sabiam que te fizeram sofrer.
– Nao! Eles ainda me odeiam. Acabaram de brigar comigo na cozinha, os dois…
Marcelo acariciou o rosto de Luz:
– Luz! Seus pais já morreram. Você nunca deu notícia desde que saiu de casa, depois daquela briga que vocês tiveram, após o enterro de Luzia. Seus pais a acusaram pela morte de sua irmã, e você foi embora, sumiu sem deixar vestígio.
– Então… – Luz percebeu que ainda estava no sótão escuro de suas lembranças.
Marcelo perguntou curioso:
– Então, o que veio fazer aqui? Você voltou muito tarde!…
– Aqui é um fim de trilho, mas vim acabar de vez com as tristes lembranças, vim vender a casa. E você ainda mora na casa ao lado?
– Sim! – respondeu Marcelo de forma monossilábica.
– Casou? – ainda havia restos de amor na pergunta de Luz.
– Sim, casei. E você?
Luz olhou para todos os lados daquela casa velha cheia de espantalhos de lembrança:
– Eu? Eu voltei.
– Tenho um presente que seus pais me entregaram para dar a você, caso voltasse.
– Um presente? – Luz perguntou ansiosa.
– Sim! Um presente.
Marcelo tira do bolso uma carta amarelada pelo tempo. Era apenas um parágrafo: ”Perdão, filha Luz! Nós te amamos muito e sentimos tua falta. Papai Gustavo e mamãe Rita.”
Luz deu um leve sorriso molhado.
– Entao! Eles encontraram uma carta de despedida da Luzia. Ela era só uma menina mimada e depressiva que queria chamar atenção. – explicou Marcelo – Foi aí que seus pais perceberam que nós dois não tínhamos culpa de nada.
– Eu a amava tanto!… Minha irmãzinha…. – confessou em prantos Luz.
– É hora de recomeçar, Luz!
– E você? Já recomeçou?
– Sim! Casei… Descasei… Me juntei com outra garota, mas não deu certo.
– Por que será que até agora não deu certo? – Luz buscava respostas. Marcelo a beijou com ternura.
Alguém volta a bater na porta insistentemente. Maria da Luz percebe que sempre esteve só. Com as cartas dos pais e da irmã na bolsa. Ela rola o trinco da porta. Era o corretor. A casa tinha sido vendida para uma construtora. O corretor estava acompanhado da ex-mulher de Marcelo e sua filha Dora. Elas também tinham vendido a casa ao lado. Ali iam fazer um condomínio. Os dois terrenos eram enormes, bem como os lotes de outros ex-vizinhos, também vendidos.
– Meu nome é Tereza. Esta é minha filha Dora. Marcelo falava muito de você. Ele casou comigo, mas nunca deixou de amar a sua eterna Luz. Creio que por isso nosso casamento não deu certo. Ele conseguiu entrar em contato com você antes de morrer? Tinha umas cartas pra entregar…
Foi, então que Luz, com os olhos cheios de lágrimas, voltou ao presente:
– Sim! Ele conseguiu meu telefone. Falamos por telefone. Ele me enviou as cartas via correio.
A filha de Marcelo, então, intrometeu-se na conversa:
– Uma semana depois, ele morreu. Parece que ele só precisava falar com você para morrer. Ele me confidenciou que ele nunca mais tinha sido feliz. Aquele foi um dos dias mais felizes de sua vida: o dia em que ele falou com você pelo telefone, mas foi como se ele tivesse falado pessoalmente, como se tivesse podido abraçá-la, enxugar as lágrimas de seu rosto…
Maria da Luz percebeu que sua volta era um último encontro.
– Sim! Abraçamo-nos. Choramos juntos. Ele me consolou…
Luz assinou todos os papéis. Resolveu tudo com o corretor. Já podia voltar. Despediu-se de Tereza e Dora.
– Foi bom conhecer vocês. Lamento que não tenha dado certo com Marcelo, Tereza! Ele era um homem bom.
-Também lamento por vocês. E agora? Aonde você vai?
– Vou voltar pra onde eu estava.
– Papai disse que você estava morando na França.
– Sim! Moro na Cidade das Luzes.
Luz despediu-se de todos. Deu uma última olhadela para a casa velha. Tinha prestado conta com o seu passado. Seus fantasmas agora poderiam descansar sem culpas. Carregava uma mala cheia de lembranças e perdões. Agora ela poderia luzir em paz.
SOBRE A AUTORA – Wanda Cristina da Cunha é escritora (poetisa, cronista, contista, romancista), radialista, jornalista, professora, compositora. Nascida em São Luís do Maranhão, em 05.06.1959, filha do escritor, professor e jornalista Carlos Cunha e da professora Plácida Jacimira Cabral da Cunha. Formada em Comunicação Social (jornalismo) pela UFMA e em Letras pela UEMA; especialista em Língua Portuguesa e em Comunicação e Reportagem; especialista em Teoria Literária e Produção de Texto pela Faculdade Batista de Minas Gerais; especialista em Educação Musical e Ensino da Artes pela Faculdade Batista de Minas Gerais. Licencianda do Curso de Música Pela Uniasselvi. Nove libros publicados. Já conquistou vários prêmios literários e musicais.
3 respostas
Wanda Cunha, uma escritora rica em conteúdo e uma pureza verbal herdada do pai. Constrói como poucos contos, poemas. Recita verbos como poucos. Saúdo Wanda Cunha!
Obrigada, confrade!
Parabéns querida amiga e confreira Wanda (IHGM) e Presidente da AMT!
Você é Luz também… Luz que brilha… Brilha muito! E Marcos Fábio outo querido amigo e grande escritor e ativista cultural, com projetos literários arrojados e primorosos!
Meus aplausos!