O pedreiro Thaíto e Maria Rosa amasiaram-se. Ele estava cansado de solidão. Queria alguém com quem pudesse repartir a comida da marmita. E aquela amigação chegou oportuna e promitente. Ademais, a manceba era bela. E o coração do operário estava sob o feitiço da sedução.
A diferença de dez anos, entre as idades, era o suficiente para que o quarentão babasse diante daquele par de quadris trintão, invejável, que se sacudia, de forma estonteante, quando as belas pernas locomoviam-se em sua direção.
Maria Rosa, ex-moradora de um meretrício, não era – cá pra nós – boa bisca. Já havia dormido, de forma intermitente, com toda uma padaria: o padeiro, o filho do padeiro, o ajudante do padeiro, o empregado do padeiro… E não se pode dizer que aquelas futricagens eram ossos do ofício. Nada! Rosa gostava de fazer horas extras, fosse com quem fosse. Seu corpo poderia ser comparado com uma colônia de povoamento, onde nunca faltavam colonizadores.
Nos tempos áureos de seus vinte anos, quando a rua do prostíbulo desembocava no cais, ela chegou a descer a escala hierárquica da Marinha: de almirante até marinheiro, todos passaram pelo seu corpo. Era meretriz por convicção. Contudo, sabia que a modesta casa de Thaíto era mais aconchegante do que sua antiga residência.
Enquanto o pedreiro viu em Maria Rosa a companhia de que tanto precisava, a prostituta viu em Thaíto o símbolo da ingenuidade, a esperança de sair do rés-do-chão de uma vida promíscua, em direção ao entressolho de uma vida melhor. Ele era o único homem que não a via como um objeto descartável e sem valor.
Se existia amor? Havia um pacto tácito de camaradagem. Antevia-se, contudo, que o convívio poderia criar um alicerce de sentimentos, cujas paredes seriam erguidas em meio a bonanças e tempestades. Ademais, Maria Rosa prometera a si mesma mudar seus hábitos.
Da união, nasceram Juliana e João José. Maria Rosa ia completar quarenta anos e Thaíto já dobrava a esquina dos cinquenta, quando o casamento foi por água abaixo. Na época, eles moravam numa casa modesta na ladeira calma da Rua Raimundo Correia, construída com a argamassa do suor de Thaíto e pintada com a cal de sua dignidade de operário.
Desde que o casal convidara Henrique, o ajudante de pedreiro com quem Thaíto trabalhava, para ser padrinho do filho caçula, que o relacionamento a dois deslizava em brigas. Acontece que Maria Rosa estava de namorico com o compadre. Este, com o seu cinismo natural, impôs àquela que deixasse imediatamente o pedreiro… Foi o suficiente para demolir o casamento de dez anos. Maria Rosa expulsou o companheiro de casa.
No rosto de Thaíto, ladrilhos de tristeza e decepção. Ele arrumou as trouxas e foi rebocar suas angústias na casa de um irmão de leite, na Rua dos Afogados, esquina com a Rua das Hortas. Ali, havia um botequim, no qual Thaíto embriagava-se diuturnamente. Seu olhar vivia esfacelado no chão, como se aquele farrapo humano tivesse caído mortalmente do andaime de sua esperança. Enquanto isso, Maria Rosa colocou, cinicamente, o amante dentro de casa.
O tempo passava. Juliana ficava mocinha. Suas quinze primaveras denunciavam a beleza de mulher que a natureza ainda modelava. Ela começou a ser alvo dos elogios do padrasto. Entrementes, a mãe, ante os amargores com que o amante a presenteava, baqueava-se. Começava, pois, a colher rugas no rosto feminil sofrido.
Thaíto era uma página virada. João José era o único que visitava, de vez em quando, o pai. O tempo fingia apagar o fogo de Maria Rosa. Mas nem ele simulava apagar a chama de dor que Maria Rosa acendera no coração de Thaíto.
Quando Juliana apareceu grávida, todo mundo pensou que fosse do namoradinho que ela havia arranjado. Juliana chamou a mãe e confessou sua tragédia: foi num domingo. Maria Rosa tinha ido à feira; João José fora visitar o pai. Em casa, ficaram sozinhos, Henrique e a enteada. Ele, com uma faca na mão direita, despiu a menina de quinze anos. Fez o que quis com seu corpo em flor.
Contudo, a confissão de Juliana servira apenas para levantar uma muralha de ódio entre a mãe e a filha. Sempre no final das contas, Rosa acreditava piamente nas mentiras que o amante arranjava. Daquela vez, entretanto, ele confessou o estupro. Mais que isso: confessou que gostava da menina e que queria viver maritalmente com as duas.
Em vez de Maria Rosa abominar o amante, abominou aquela que saíra de suas entranhas. Mãe e filha tornaram-se inimigas. E foi assim que Juliana, por vingança ou sede de prevaricação, deixou-se seduzir pelo padrasto e reivindicou o direito de ser sua amásia. Apaixonou-se também por Henrique. Ninguém sabia o que poderia haver de benquerente ou, mesmo, de sex appeal naquele homem inescrupuloso que mãe e filha disputavam.
Henrique vivia, a partir de então, maritalmente com as duas, mas em casas separadas, mantidas em extrema penúria. João José, decepcionado, foi morar com o pai. Thaíto pegou, novamente, a pedra e o barro, largou a cachaça e foi tomar conta do filho.
Maria Rosa não abria mão do amante em favor da filha. Ainda assim, arrumou um feirante, com quem mantinha encontros clandestinos durante as noites em que Henrique dormia com Juliana.
O adultério entre Maria Rosa e o novo amante, foi descoberto. Que auê!… O feitiço da traição virou contra o feiticeiro. Henrique, insatisfeito com a perfídia da concubina, quis vingar-se e acabou morrendo com três tiros à queima roupa, detonados pelo feirante, que fora preso em flagrante delito. A trágica história foi parar na primeira página dos jornais.
Thaíto viu o rosto da ex-mulher estampado na página policial de um matutino. Viu, também, as fotos dos dois amantes. Não sabia ler, mas não precisava. Deduziu que uma tragédia havia acontecido. Chegando em casa, pediu a João José que lesse a reportagem em voz alta. No entremeio da leitura, o filho exauriu-se em pranto….
Maria Rosa e Juliana não tinham mais com quem contar. Eram codonatárias de uma mesma viuvez, desamparadas e amargas. Mas ambas, embora se odiassem reciprocamente, tinham a mesma tábua de salvação: Thaíto. E foi assim que João José convencera o pai a perdoar a Maria Rosa. Thaíto juntou as ruínas da ex-mulher e da filha. Colocou-as debaixo do seu teto. Com a pedra, a pá, a enxada, o tijolo, a cal e a argamassa, ele restaurou o lar que há sete anos desabara.
Mas quem disse que Maria Rosa aprenderia a lição? Depois de estar novamente sob os cuidados do pedreiro, começou a ter um caso com o mulato Jarará, vizinho dos dois. A notícia da traição correu de boca em boca. Ao anoitecer, Thaíto voltou do serviço. Maria Rosa, como de costume, passeava pela vizinhança. João José assistia a um filme. Juliana ninava seu bebê.
O pai e os dois filhos reuniram-se solidariamente na sala, levados pelo estigma da mesma dor. Tudo era casual, inclusive o desabafo simultâneo:
– Ela nunca nos amou – as vozes saíram coincidentes, uníssonas e tristes.
E foi assim que os três, sob as trevas de suas taciturnidades, lembravam que as pilastras de um perdão serviram apenas de arrimo para uma nova laje de traição. Depois de um milheiro de agonias trocadas, deitaram-se…
Pela calada da noite, Maria Rosa chegou. Agasalhou-se debaixo do lençol. No momento em que o silêncio fez-se profundo e o sono parecia dominar todos os mortais, um vulto levantou-se do leito, dirigiu-se à rede daquela que fora, ao longo da vida, uma mãe desalmada e uma mulher adúltera. A silhueta, com um dos braços pendentes, apertando o cabo de uma faca, enfiou o gume várias vezes no coração de Maria Rosa… Parecia dividi-lo, quiçá, em busca de seu pedaço…
SOBRE A AUTORA – Wanda Cristina da Cunha é escritora (poetisa, cronista, contista, romancista), radialista, jornalista, professora, compositora. Nascida em São Luís do Maranhão em 05.06.1959, filha do escritor, professor e jornalista Carlos Cunha e da professora Plácida Jacimira Cabral da Cunha. Formada em Comunicação Social (jornalismo) pela UFMA e em Letras pela UEMA; especialista em Língua Portuguesa e em Comunicação e Reportagem. Especialista em Teoria Literária e Produção de Texto pela Faculdade Batista de Minas Gerais; especialista em Educação Musical e Ensino da Artes pela Faculdade Batista de Minas Gerais. Licencianda do Curso de Música Pela Uniasselvi. Nove livros publicados. Já conquistou vários prêmios literários e musicais.