segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

UM CONTO AOS DOMINGOS – #014 – ADEUS PRA MIM!! (Cristina Galletti)

Publicado em 5 de janeiro de 2025, às 10:36
Print do Jornal O Progresso.

Da janela da sala o céu já está mudando de cor… de âmbar para azul para meio rosa, para âmbar de novo e depois meio lilás até escurecer.
Muitas estrelas à noite no céu de primavera. Uma das noites mais lindas nessa parte do mundo. Uma menina de vestido até o joelho com uma pala florida e saia rosa brinca com uma boneca de pano com um olho só no jardim onde as roseiras estão todas em flor iluminadas pelas estrelas, ela não desgruda dessa boneca que carinhosamente chama de Lila. Mesmo entre outros presentes e brinquedos, essa é sua preferida. Quando seus primos e alguns colegas fazem piadas, ela finge não ouvir. Vive no seu próprio mundo. E no seu mundo Lila é sua melhor companhia e sua única amiga.
Na sua casa tem um porão aberto, pois a casa foi construída em um terreno com grande desnível, onde é a oficina de carpintaria do seu pai e Laura aproveita um cantinho pra brincar e guardar seus pequenos tesouros e onde sempre tem a companhia de Lila. Somente Lila conhece os segredos de Laura. Como aquela caixa de madeira marchetada que seu pai fez e lhe deu de presente no seu aniversário de 8 anos, onde guarda seus livros e alguns objetos preciosos que juntou durante sua curta existência:
Um pequeno espelho já meio enferrujado, mas que Laura acha lindo,
Papéis de carta de vários tipos e tamanhos,
Um batom em creme em formato de morango [na verdade, o batom acabou e ela guarda somente a embalagem],
Três palitos perfumados,
Um cartão com a foto e oração do santo anjo,
Um pequeno frasco de perfume vazio em formato de cara de cachorro,
e um pequeno cavalo marinho de vidro verde que ganhou da tia Helo, que trouxe pra ela da ilha de Murano, na Itália.
Quando pensa nisso, Laura imagina estar sonhando. Ainda mais quando lembra sua tia contar de como aquele cavalo marinho foi feito. Como pode ter saído uma peça tão bela de areia e fogo?
Laura fica impressionada com tantos detalhes, só Lila a ouve quando ela está cheia de pensamentos e questionamentos. Parece até que hoje Laura ouviu Lila dizer pra ela perguntar para o professor de química. Com certeza ele terá uma boa resposta pra essa dúvida.
Laura nunca perguntou.
Assim como nunca contou pra sua mãe que o padre passou a mão em suas mãos, de um jeito muito estranho, durante a comunhão, na missa de domingo. Somente Lila sabe disso.
Laura agora com 14 anos. Já precisa começar a pensar qual profissão seguir. Seus pais não conversam muito e nesse momento Laura já sente falta de alguém que converse com ela.
Lila nem sempre responde todas as suas perguntas e às vezes Laura quer só ouvir.
O tempo foi passando e hoje Laura assiste a um programa na tv no domingo pela manhã que mostra exatamente a ilha de Murano e como as peças famosas são feitas. Mais carinho ainda por seu cavalo marinho. E mais carinho por sua tia que lhe presenteou com uma peça tão incrível. Aprendeu que seu cavalo marinho não é de vidro, mas sim de Murano. Laura cresce com o desejo de viajar para essa ilha e ver de perto o nascimento dessas obras de arte, que para ela são a perfeição.
Uma noite dessas, Laura, então com dez anos, sonha pela primeira vez com uma caixa de fósforos deixada na beira de uma longa estrada de terra batida, com vegetação abundante dos dois lados, igualzinha à estrada que leva para a casa de seus avós paternos. Ela acorda pensativa e não vê nenhum sentido nesse sonho um tanto estranho.
Ela sonha repetidas vezes desde então. O mesmo sonho.
Algumas vezes, ela tenta abrir a caixa e acorda em seguida. Nada faz sentido, nem sempre lembra no dia seguinte, às vezes só lembra da caixa.
O tempo passa, Laura continua sonhando com essa estrada que vai até onde a vista alcança, com vegetação de um lado e outro e a pequena caixa que ainda está lá. Noite após noite.
Laura sonha de novo o mesmo sonho e dessa vez consegue contar os palitos, 53.
O verão chegou mais quente que nunca e com rajadas de vento. Enquanto Laura e o irmão estão na escola e os pais no trabalho, um incêndio na mata próxima a sua casa leva faíscas para sua casa também. Nada de mais sério acontece, já que a família estava toda fora, mas Lila fica chamuscada. Agora Lila é uma boneca de pano de um olho só e toda chamuscada. Laura não se importa. Está feliz que sua boneca escapou sem maiores danos e pede para sua tia Luzia fazer um vestido novo para ela. O cheiro de queimado não passa e talvez uma roupa nova ajude.
Laura já está ficando mocinha e já não brinca com a boneca, mas a deixa sempre à vista. Gosta de história e está encantada com a história de amor entre Paris e Helena, que hoje a professora contou em sala de aula… (por isso Laura adora as aulas de História da professora Annie. Ela sempre conta parte e curiosidades das histórias que não estão nos livros). Laura tem dificuldades em entender o porquê de tantas guerras e o porquê um encontro de amor tem que ser tão sofrido… Laura literalmente viaja pensando nisso, também sonha com um amor e muitas questões brotam em sua cabeça adolescente.
Agora Laura faz trabalho voluntário uma vez por semana, na creche administrada pela paróquia de Santa Cruz. Sempre aos sábados à tarde. Com as crianças, Laura consegue interagir e até faz uma nova amizade com uma menina de verdade.
Alice, que como ela, é uma voluntária, uma das poucas amigas que teve em sua vida e a única com quem dividiu alguns segredos. Ela adora ouvir as histórias de Alice, principalmente quando ela lhe conta sobre os meninos e que já até beijou na boca.
Alice é bem diferente de Laura, esfuziante e conversadora, conta abertamente das suas pequenas aventuras, dúvidas e emoções. Alice não sente vergonha dos seus sentimentos, acha tudo natural e, sem saber, ela ajuda Laura a passar por essa fase de maneira mais leve e alegre. Juntas vão ao cinema, passeiam de bicicleta e trocam confidências.
De novo o sonho.
Uma longa estrada de terra batida e uma pequena caixa. Dessa vez, cai uma chuva e estranhamente a caixa continua seca. Laura se abaixa e tenta abrir a caixa, mas logo acorda com barulho de fogos de artifício. Laura está sozinha em casa. Seus pais saíram em viagem e levaram seu irmão. Ela ficou porque está se preparando para o vestibular.
Nessa manhã, ao se olhar no espelho, Laura estranha o comprimento de seus cabelos castanhos com um tom de rosa nas pontas. Fazia tempo que não se olhava tão demoradamente. Se viu diferente de repente, notou até uma pequena pinta perto da sua orelha esquerda – não sei como não a tinha visto antes… ela deve estar aí desde sempre. Pensou. E, de alguma maneira, Laura se sente quase bonita.
Corre e pega sua bicicleta de duas cores e uma pequena cesta na frente no porão e logo na saída encontra dona Teresa chegando com uma sacola de pães e frutas. Dona Teresa pergunta se ela quer comer alguma coisa antes de sair. Ela responde que não e já está longe com sua mochila da Minnie nas costas.
Teresa avisa que vai fazer purê de batatas com bife grelhado de frango para o almoço. O preferido de Laura. Ela acena e segue pedalando. Não dá mais de 6 minutos de pedal até a escola.
Agora o céu está cinza, típico de inverno e Laura corre para pegar o metrô. Não quer perder o trem para a faculdade, afinal é o último ano e não quer perder nem um minuto da aula de História do professor Leonardo, considerado o melhor professor da faculdade e seu orientador.
Laura está escrevendo uma tese sobre a cultura celta, povos que habitaram a região do país de Gales, nos séculos V e VI d.C., inclusive em busca de objetos perdidos, como a Cruz celta, entre outros. Será seu estudo de mestrado também. Ela adora buscar respostas, mas na maioria das vezes sempre chega a mais e mais questionamentos.
Quando ela chega ofegante em seu pequeno apartamento no terceiro andar, sem elevador, Richard a surpreende com um jantar e um pequeno pé de rosa plantado num vaso de cerâmica.
Laura não esperava por ele hoje. Mas ficou feliz com a surpresa. Com certeza Richard não cozinhou, mas esse carinho a deixou com a alma leve e se sentindo querida. Principalmente porque ela ama as misturas de sabores dos pratos tailandeses:[é o que sempre ele pede] doce, apimentado, ácido, salgado… tudo perfeito para o paladar de Laura, que com a maturidade aprendeu a apreciar novos sabores.
Depois do jantar, ela deitou-se no sofá e pegou um livro na mesinha de centro. A guerra de Troia. Até hoje, mesmo adulta, Laura tenta entender e aceitar o desfecho final dessa história… Depois de ler e reler, Laura se apaixona pelo personagem de Heitor. Entende o quanto a história vai além de Helena e Paris e o quanto vai além de uma história de amor.
Hoje sonhou com a longa estrada de terra batida, com vegetação farta e a pequena caixa de fósforos. Agora ela vê claramente que o papel da embalagem está rasgado. Não tem como ver o fabricante. Ela abre a caixa e acorda.
Laura se levanta da cama e abre a porta do seu roupeiro e, na prateleira de cima, pega a pequena caixa de madeira marchetada feita pelo seu pai.
Olha e remexe em tudo, delicadamente, revista suas memórias, seus cheiros de infância e pega o pequeno cavalo marinho verde e o coloca ao lado da Lila. Sua boneca de um olho só e chamuscada. Agora Lila não cheira mais a queimado. Ela deixa os dois num cantinho do roupeiro, pega seu casaco xadrez e sai pra trabalhar. Resolve ir caminhando aproveitando o clima e as belezas da praça da República. Se distrai com as crianças tomando sol e especialmente com uma cadela que lhe segue por vários metros, até seu dono chamá-la com autoridade.
Depois de quatro invernos, Laura acorda com o choro de Paloma. Marc dorme profundamente depois de 24 horas de plantão, então ela mesma tem que levantar e fazer a mamadeira para a pequena, agora com 11 meses de vida.
Laura já não tem mais o cabelo com as pontas coloridas de rosa. Usa um corte Channel bem clássico e elegante. Não usa mais a mochila da Minnie nas costas. Não sai mais de bicicleta, nem de casaco xadrez, e agora mora no 15º andar com elevador.
Ainda não visitou a ilha de Murano, mesmo tendo viajado muito pelo mundo. Mas no cantinho do roupeiro ainda tem um espaço para Lila e o pequeno cavalo marinho verde.
Laura terminou seu mestrado e já tem planos para o doutorado.
Paloma vai pra creche.
E a pequena caixa de fósforos, deixada à beira da estrada com vegetação farta dos dois lados, continua nos seus sonhos e dessa vez está completamente aberta, pela primeira vez.
Pela janela da sala, o céu colorido dá espaço para um cinza triste, feio e melancólico. A música agora é BY YOUR SIDE, na voz de Sade. Laura deixa uma lágrima escorrer.
Paloma vai pra faculdade. Tem uma tatuagem, já tem uma namorada e está saindo de casa para morar com ela. Laura está sozinha e saudosa, lembrando do porão onde brincava junto à oficina de carpintaria de seu pai. Ela até pode ver seu pai trabalhando pequenos entalhes, verdadeiras obras de arte na madeira. Consegue ver sua velha bicicleta com uma cestinha na frente, pintada com duas cores. Lembra de como era Alice nos tempos do trabalho voluntário, e da janela da sala do 15º andar tenta buscar as cores no céu; o âmbar, o rosa, o lilás.
As visitas estão de saída e Alice pergunta se Laura quer que ela fique mais um pouco. Laura diz que não com a cabeça e pede para amiga acompanhá-la ao quarto e colocar uma música.
Fly over the sea.
Música escolhida por Laura. Alice apaga a lâmpada e se retira. Laura lembra Alice de bater à porta na saída. A quimioterapia a deixa muito cansada e sem forças e mesmo hoje, em seu aniversário de 53 anos, teve que ir à sessão. Foi a última dessa fase do tratamento, logo adormece e sonha com a caixa na beira da longa estrada de terra batida, que agora aparece com vegetação rala dos dois lados. E ela consegue ver que os palitos não são fósforos. Laura está meio dormindo meio acordada…é muito real. É uma pequena caixa de varetas coloridas e numeradas e agora estão todas pelo chão. Conta exatamente 53 varetas.

Imagem cedida pela autora.

SOBRE A AUTORA – Cristina Galletti é Capixaba, arquiteta, peregrina, escritora, membro da Academia de Ciências Letras e Artes de João Lisboa-MA (ACLAJOL) e da Academia Imperatrizense de Letras em outubro de 2024 (AIL), onde ocupa a cadeira número 38. Em 2021, publicou, pela plataforma digital Amazon e em formato impresso, o livro de poemas “Sobre Dores e Amores”. Lançou depois os livros: “O sol nasce todos os dias”, “O silêncio de Deus (amazon)” e “Vem que eu te conto um conto”. Em 2024, lançou seu quinto livro, “O Caminho de Cristina”, que foi foi agraciado com o Prêmio Literário da Academia Imperatrizense de Letras e recebeu o selo AIL. Participou, com outras autoras, da coletânea “Mural das Minas” – antologia de literatura feminina maranhense contemporânea. Também participou como coautora em diversas antologias de contos e poesias. Em 2022 recebeu o titulo de cidadã Imperatrizense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicidade

Sites relevantes para pesquisa

Nós, do site Região Tocantina, queremos desejar, a todos os nossos leitoras e nossas leitoras, um FELIZ NATAL, repleto de fé, alegria, paz, saúde e felicidade.

E que as comemorações possam realçar nossos melhores e duradouros sentimentos.

FELIZ NATAL!

Publicidade