Já eram 8 da noite e os ânimos no velório de Ariovaldo Veloso pareciam carregados. Não na sala principal, mas numa salinha anexa, ocupada por Armando, o filho mais velho, Áurea, sua irmã e a mãe, Agnes Veloso.
Além da tristeza, havia a questão sobre o critério para repartir seu patrimônio. Armando se dizia prejudicado, talvez porque foi ele que, nesses últimos dois anos, administrou o escritório. Áurea, separada, e com uma filha de oito anos, era artista plástica. Estava abatida, pois sempre manteve com o pai um relacionamento afetuoso.
D. Agnes, abnegada companheira e fiel ao juramento nupcial, assinava embaixo tudo o que o marido decidia. E tentava contornar a situação:
— Filho, não há necessidade disso. O escritório agora é sessenta por cento seu.
— Não é só isso, mãe. É a presença de um intruso num negócio de família.
— A decisão de Ari é a minha decisão. O que ele repartiu foi o que ele amealhou.
A história de Ariovaldo era exemplo para toda a família. Em 1960, aos 18 anos, veio de Alcântara, cidade histórica do Maranhão, para a capital São Luís. De pele negra e origem humilde, foi morar com a Tia Graça, que fizera a mesma travessia da Baía de São Marcos oito anos antes. Em Alcântara, sempre foi um bom aluno. Em São Luís, cursava Direito na Universidade Federal e dava aulas particulares.
Tia Graça era uma segunda mãe, pois Ari era filho único de sua irmã gêmea.
— Vá dormir, filho. Já são duas horas e você tem de pegar o ônibus cedinho.
— Só mais vinte minutos, tia. Tô concluindo um trabalho pra defender amanhã.
— Ainda bem que falta pouco pra você se formar.
Antes de se formar, Ariovaldo dava aulas numa escola à noite. Pensando no futuro, sempre guardava parte dos ganhos. Formado, correu para o mestrado. Cinco anos depois, professor na mesma universidade. Mas a glória era a advocacia.
O Dr. Ariovaldo Veloso abriu seu escritório numa casa alugada, numa praça no Centro da cidade, local movimentado e com estacionamento. Ao mesmo tempo, iniciou-se no mercado imobiliário. “É a base de um patrimônio sólido” — dizia aos mais jovens.
Certo dia, no aniversário de uma amiga, conheceu Agnes, jovem de 27 anos, formada em Letras. Morena bonita e educada, de altura mediana: a mulher dos sonhos de qualquer homem. Encantado, convidou-a para sair. Não demorou muito, resolveram casar-se. E ela foi sua secretária até o sétimo mês de sua primeira gravidez.
O escritório crescia a cada ano, e já eram sete advogados. Grandes empresas figuravam em seu rol de clientes. Dr. Ari comprou a casa e reconstruiu ali um prédio de três andares, com escritórios, sala de reunião, biblioteca. No terceiro andar, o setor imobiliário. Dois anos depois, já figurava entre os cinco maiores da cidade.
No velório, já eram quase 10h quando Armando retomou a conversa. Não conformado, ressuscitava o assunto sempre que oportuno. No entanto, sua contestação não era aceita nem pela mãe nem pela irmã.
Mesmo assim, achava uma brecha para atacar a irmã:
— Áurea não tá nem aí porque agora só quer saber dessa tal de… Não liga mais pra Adrielle. Se não fosse a senhora, não sei o que seria dessa menina.
— E eu não sei por que você tá puxando esse assunto agora. Ridículo, isso!
— Ah, não sabe?! É pra você se ligar, querida. Ainda dá tempo de…
D. Agnes fazia tudo para evitar essas brigas. E teve de intervir com autoridade: “Por favor, respeitem o silêncio do falecido! Não vou tolerar mais isso”.
Ultimamente era sempre assim quando Armando e Áurea estavam frente a frente. Ele a criticava por causa de seu relacionamento homoafetivo com uma italiana. Não aceitava — como dizia à mãe — a ideia de ter uma irmã “sapatão”.
Nas dunas da paixão, Áurea e Giulia se conheceram no ano passado, em Barreirinhas, a 260 km de São Luís. Áurea expunha suas telas no calçadão da Av. Beira Rio. Daí em diante, era “Ti voglio sempre al mio fianco!” pra cá; “Te quero sempre ao meu lado” pra lá. Em Milão ou São Luís, encontravam-se três ou cinco vezes ao ano.
Para se defender, Áurea detonava os podres do irmão: “Olha só quem está jogando pedras agora! O maridão que bate na pobrezinha da mulher!” E, em tom sarcástico, ameaçava-o: “Qualquer dia desses, D. Maria da Penha bate à sua porta. E, aí, o nosso honrado paizinho vai se contorcer no caixão”. D. Agnes interveio mais uma vez: “Parem com isso, ou eu os expulso daqui”.
Foi logo após a inauguração do novo escritório que o Dr. Ari conheceu Guerreiro. Ou melhor, João Silvério Faria, um negro natural de Icatu (MA), a cidade “das águas boas”, como a batizaram os Tupinambás. “Homem de boa índole” — dizia. Nasceu ali uma amizade improvável. Aos 31 anos, casado e pai de dois filhos, Guerreiro não tinha emprego. Fixou-se como lavador de carros na mesma praça do escritório do Dr. Ari. E ganhou o apelido por causa de “Regueiros Guerreiros”, música da “Tribo de Jah”, uma banda de reggae da qual era fã incondicional.
Guerreiro lavava o carro do Dr. Ari todas as sextas. A amizade se prolongou de tal forma que, mesmo aposentado, o Dr. Ari deixava o carro com ele quando ia ao escritório às sextas pela manhã. De volta à praça, sentava-se para conversar e desabafar. Guerreiro ouvia atento e, eventualmente, arriscava um conselho: “É assim mesmo, Dr. Ari. Coisa de jovem. Paciência! Ele vai se ajeitar, o senhor vai ver”.
Além do desabafo, perguntava sobre a família do amigo. “Qualquer hora passo lá para lhes dar um abraço”. Cumpriu a promessa no Natal passado, já na fase terminal de um câncer de pulmão. Levou o abraço e uma TV de 43 polegadas.
De dois em dois meses, uma farta cesta básica para o amigo. Uma deferência que se justificava porque Guerreiro cuidava de seu carro como se fosse suas coloridas roupas de reggae. Tinha uma sacola exclusiva com xampu, flanelas e panos novos. E sempre o alertava sobre o nível do óleo, água do radiador, calibragem dos pneus.
Armando também reclamava das doações que o pai fazia a instituições filantrópicas. E não aceitava esse seu amigo que, além de regueiro, era “maconheiro”.
“Mentira!” — rebatia o pai. “Só porque é negro e pobre?” E desafiava o filho: “E se você tiver de provar que essa acusação não é puro racismo?!” E concluiu: “Já o conheço há mais de dez anos. Mais ‘honesto’ do que muita gente por aí”. Disse isso porque suspeitava que o filho tirava dinheiro sem o devido registro contábil.
No sepultamento, um vulto se movia timidamente por trás das pessoas. E foi logo identificado por Armando, que queria ter com ele uma conversa definitiva. A mãe o proibiu de tal atitude e lhe pediu que respeitasse o sentimento das pessoas: “Tenho certeza de que seu pai está feliz com a presença do amigo”.
Para Armando, Guerreiro não podia ficar com a casa em que estava morando, de propriedade do pai, e mais os trinta mil reais que o testamento lhe assegurava. Até porque já estava empregado numa pizzaria. Já havia tentado convencer o pai a excluir esse “item”, uma agressão à família. Debilitado, Seu Ari balbuciou: “Nem uma vírgula, nem uma vírgula! O que está escrito, está escrito”. Ainda no cemitério, D. Agnes arrematou a discussão: “A vontade do pai de vocês é soberana e será respeitada. Porque o que ele ‘repartiu’ foi o que ele mesmo amealhou”.
Impenitente, Armando maquinava inviabilizar a execução do testamento do pai. E resmungava: “Vamos ver!” Herdeiro guerreiro! Tá certo! Só se for lá na Jamaica!”
SOBRE O AUTOR – Eloy Melonio – Maranhense de São Luís, professor, escritor e letrista. Graduado em Letras (FAMA/2007). Membro da AMEI e da APB (Academia Poética Brasileira/2018). Livros publicados: Dentro De Mim (2015) e Travessia (2021). Idealizou o “Dia Municipal da Poesia” (Lei 6.394). Concursos de poemas: 3º Lugar no III FESTMACPU (UEMA/2017) e 2º lugar no I Concurso de Poemas da APB (2024). Em 2021, recebeu a Medalha do Mérito Legislativo da Câmara Municipal de São Luís. É colunista de alguns sites, entre eles o FACETUBES (APB) e Blog do Ed Wilson.