sábado, 22 de março de 2025

UM CONTO AOS DOMINGOS – #012 – ANIVERSÁRIO DA IRMÃ CLEMEM (Itaerço Bezerra)

Publicado em 22 de dezembro de 2024, às 10:52
Imagem: Print do Jornal O Progresso.

Hoje, aos 7.0 marcados na minha existência, bem que eu gostaria de deitar a cabeça no travesseiro, sem o peso na consciência que me atormenta por alguns pecados cometidos na adolescência – (coisa de jovem) – presumo que tais pecados já foram perdoados, eu é que não consigo me perdoar.
Quando jovem, não me preocupei muito com o futuro, vivia os auspiciosos momentos da juventude como quem nada espera da vida e descansava tranquilo sentado sob uma sombra qualquer me alimentando de vento, sorvendo a água da esperança e respirando os ares da ilusão. Meus amigos também não tinham pressa, a não ser a de sorrir. Sorrir de tudo e de todos, sorrir dos que queriam levar a vida a sério.
E nesse clima de desapego às coisas sérias, entrei numa fria monumental, dessas que nos deixam procurando uma saída que a gente não encontra, ou ao menos uma justificativa convincente para explicar o inexplicável.
Irmã Clemem, uma freirinha cinquentenária, incansável, de uma inteligência raríssima no mundo religioso, em que a maioria ainda era detentora de uma criticidade ameninada, faria mais um ano de vida, com direito a presentes, bolo, guaranás e parabéns. Desde que os alunos do colégio Instituto Maria de Mathias patrocinassem. A supracitada irmã era diretora do colégio, mas não estava disposta a gastar com festas de aniversário o minguado dinheiro destinado a atender as pessoas carentes que a procuravam.
Nenhum obstáculo havia que impedisse os alunos da sétima série ginasial daquela época de fazer a festa merecida da irmã. Capitaneados pela professora de literatura, Marinêz, fomos à luta. Reuniões secretíssimas foram realizadas, tudo haveria de ser feito no mais absoluto sigilo, havia de ser surpresa.
Depois de algumas reuniões em que quase ninguém se entendeu, ficou decidido: meninas, coordenadas pela Rosemira, encarregar-se-iam do bolo. Não um bolo qualquer, simples, pequeno… Havia de ser grande, confeitado, digno da aniversariante.
Os meninos responsabilizar-se-iam pelos salgadinhos, refrigerantes e, se possível, um frango assado. Nada de bebidas alcoólicas, afinal era o aniversário de uma freira, mesmo sendo uma pessoa bastante liberal, bebidas alcoólicas “não pegavam bem”. Considerações da professora Marinêz.
Os meninos dividiram-se em duas equipes. Uma ficou responsável pelos salgadinhos e refrigerantes. Eu, Marcos Aurélio e Ricardo fomos à luta para conseguir o frango. Naquela época, e naquele local, era o item mais difícil, não havia os famosos “frangos de granjas”, somente galinhas caipiras que eram vendidas, vivas, aos sábados, nas feiras, “a preço de ouro” – e nós não estávamos dispostos a pagar.
Depois de uma conversa entre os três, resolvemos subtrair uma “penosa” dos moradores da periferia da cidade, onde havia em abundância. Assim foi combinado, e assim foi feito.
Às 22h de uma noite em que a lua derramava seus raios pálidos sobre as casas de taipas e cobertas de palhas de babaçu localizadas na periferia da cidade, onde não havia energia elétrica e as residências eram iluminadas por lamparinas ou lampiões a gás, três estudantes, do Instituto Maria de Mathias, o colégio da elite da cidade, sorrateiramente deslocavam-se por ruas de chão batido à procura de uma galinha caipira. Nesse horário, todos os moradores estavam dormindo o sono reparador do cansaço proveniente da árdua luta diária, o que facilitaria bastante a nossa tarefa-crime.
Na nossa peregrinação pelas ruas daquele bairro, fomos favorecidos pela sorte, ou contagiados pela tentação do pecado. Encontramos, no terreiro de uma casa simples, empoleirados, numa árvore, vários galináceos que dormiam tranquilamente até a nossa chegada. Afastei-me um pouco, apaguei as luzes do veículo, deixei o motor funcionando em marcha lenta, abri as portas do carro e avisei para os companheiros: agora é com vocês!
Os companheiros saíram, pé ante pé, até o poleiro, pegaram a primeira galinha que encontraram, voltaram correndo e entraram no carro. Até aí tudo bem, a ação havia sido executada com sucesso absoluto. Só que o galo não estava disposto a permitir que alguém subtraísse um membro do seu harém sem que sofresse o castigo merecido. Logo abriu o maior berreiro, acordando o proprietário das galinhas e toda a vizinhança.
A ação havia sido planejada prevendo qualquer imprevisto. Imediatamente arranquei e dobrei na primeira esquina. Enquanto isso, o dono da “penosa” saía porta afora, com uma cartucheira na mão, proferindo todos os adjetivos desqualificativos que conhecia contra os malfeitores que haviam invadido o seu terreiro e roubado uma galinha. Mas nós já estávamos longe, fora do alcance até das pragas rogadas.
Chegou a hora de decidir onde ficaria a galinha até o dia seguinte, para ser entregue às meninas para o abate e o “preparo”. Eu não poderia ficar com ela, por morar em alojamento; o Ricardo, muito menos, por ser filho do juiz da comarca local, portanto, não pegava bem; o Marcos Aurélio também tinha suas razões, não havia como explicar a chegada altas horas da noite carregando uma galinha. O problema era tão grave que quase decidimos devolver a galinha ao proprietário. A solução salvadora foi convencer o Marcos Aurélio, que, sob livre e espontânea pressão, resolveu levá-la para sua casa. E fosse lá o que Deus quisesse. Nem imaginávamos que problemas maiores ainda estivessem por vir.
Chegando em casa, a galinha estranhou o ambiente e abriu o bico, literalmente.
Acordou os pais do Marcos, que pediram explicação para o fato de, àquela hora da noite, aparecer com uma galinha. Explicações dadas, não muito convincentes, mas, pelo sim, pelo não, a galinha resolveu parar de cacarejar, e todos foram dormir.
Finalmente chegou o grande dia, ou melhor, a grande noite. Dezenove horas, os alunos iam chegando, um a um, e ocupando as cadeiras do auditório. No palco, uma mesa posta, carregada de iguarias: bolo, refrigerantes, um garrafão de vinho – adquirido com a conivência da professora – e uma galinha assada. Quatro salas do noturno, 60 alunos por classe, 240 alunos, portanto. O espetáculo estava montado somente esperando a aniversariante, que estava assistindo a uma missa em sua homenagem.
Às 20h, a maioria dos alunos estavam sentados, alguns espalhados pelos cantos relendo o seu discurso… A professora deu mais uma rápida olhada para verificar se estava tudo em ordem, recomendou que todos ficassem em silêncio e, na hora da entrada, todos levantassem e cantassem os parabéns, e saiu para ir ao encontro da irmã e trazê-la ao palco.
Poucos minutos depois, um leve toque na porta, aquele era o sinal para que todos levantassem, a irmã estava chegando. A porta abriu-se levemente, deixando aparecer a senhora Nazaré, secretária do colégio, com cara de poucos amigos, que pronunciou compassadamente os nomes: Itaerço, Marcos Aurélio e Ricardo, acompanhem-me até a sala dos professores; os demais permaneçam no auditório e aguardem. PQP, alguém bateu com a língua nos dentes, resmunguei.
Na sala dos professores, fomos recebidos, gentilmente, pela professora Marinêz,que nos convidou para sentar. Depois de alguns minutos, que me pareceram uma eternidade, entra na sala a irmã Clemem, com o sorriso de sempre. Cumprimentou-nos gentilmente e sentou-se à mesa.

– Meninos, eu soube que vocês estão preparando uma surpresa para mim.

– Estamos, sim, irmã – respondemos em couro, como se tivéssemos ensaiado aquela resposta.

– Eu estou deveras comovida com o benquerer de todos vocês a mim. Porém,como todos sabem, estamos num colégio essencialmente religioso, e não se pode permitir algumas ações próprias de jovens que não condizem com o ambiente religioso. Por isso, gostaria que detalhassem os preparativos e como vão desenvolver o cerimonial, sem omitir detalhes, por pequenos que sejam. O que prepararam?
Como ninguém se pronunciou, a irmã virou-se para mim e disse:

– Itaerço, por favor, comece você!

– Nós fizemos uma vaquinha.
Logo fui interrompido pela irmã:

– Parabéns, cada dia vocês me surpreendem. Jamais imaginei que, em tão pouco tempo, alguém seria capaz de fazer uma vaca, ou uma vaquinha, como você mesmo falou. Gostaria de contribuir com o registro da patente de tão inusitada criação. Mas isso fica para depois. Prossiga.
Nessas alturas, eu me encontrava branco como se fosse uma folha de papel, tremendo igual uma vara verde em dia de temporal e desconfiado tal qual um cachorro vira-latas que caiu de um carro de mudanças. Apenas balbuciei:

– Fizemos uma coleta entre os alunos e arrecadamos algum dinheiro para comprar os ingredientes da festa. Um bolo, alguns refrigerantes, 500 salgadinhos e um garrafão de vinho.
Diante de um silêncio constrangedor em meio ao qual dava para ouvir as batidas dos corações dos presentes, ouviu-se a voz da irmã, que, aliás, parece havia perdido a capacidade de dialogar – do seu rico vocabulário restava apenas uma palavra:
Prossiga.

– Só isso! – respondi.

– Só isso? – perguntou a irmã. E prosseguiu: – Juro que imaginei que merecia mais alguma coisa, uma galinha assada com farofa… Mas eu entendo, as dificuldades são muito grandes; galinha está muito caro. Contentar-me-ei com o bolo, os salgados e os refrigerantes. Fazer o quê!
O Ricardo, sem perceber a intenção da irmã, disse.

– A galinha tão desejada existe, essa era a grande surpresa

– Eu sabia que vocês não me decepcionariam. Muito obrigada – respondeu a irmã. – Só mais uma coisa: como vocês conseguiram a galinha?
Com os nervos à flor da pele e angustiado para pôr fim àquela investigação, pois já havia percebido que a irmã sabia de tudo, de um só fôlego, disse:

– Nós roubamos a galinha – disse, e esperei impaciente a reação da irmã.

– Tudo bem! Vamos, então, à festa.
Eu só podia estar sonhando, aquela resposta não era a que eu esperava, muito menos era próprio de uma religiosa reagir tão passivamente diante daquela situação. A irmã restabeleceu o fôlego e prosseguiu.

– Antes, porém, eu gostaria de determinar alguns procedimentos, e vocês escolherão um, para que fiquemos em paz com a sociedade e com Deus. Primeiro, amanhã, irmã Clemem, professora Marinêz, Itaerço, Ricardo e Marcos Aurélio iremos à casa do proprietário da galinha, os três (apontou para nós) perguntarão o preço da galinha roubada, pagarão o preço cobrado, pedirão desculpa pelo ato praticado e se comprometerão a nunca mais fazer tamanha asneira. Ou, então serão expulsos literalmente do colégio (os três) pela prática espúria de roubo qualificado. Vocês escolhem! E agora deixemos de conversa fiada e vamos à festa de aniversário, essa conversa me deu fome.
Anos depois, na nossa festa de formatura, demos boas gargalhadas relembrando o episódio ANIVERSÁRIO DA IRMA CLEMEM.
Essas lembranças estão gravadas em minha memória. Lembranças de uma época em que o céu era o limite para minhas aventuras.

Imagem cedida pelo autor.

SOBRE O AUTOR – Francisco Itaerço Bezerra – nasceu em Catolé do Rocha (PB), em 1942. Em abril de 1952, mudou-se com os pais para o Maranhão, fixando-se inicialmente no município de Mirador. Em agosto de 1962, veio para Imperatriz para continuar seus estudos e preparar-se para fazer o curso superior de Engenharia Civil. Em 5 de novembro de 1964, foi admitido na Rodobrás, empresa do governo federal que fazia a conservação da BR-010, Belém-Brasília. Na Rodobrás, exerceu vários cargos até a absorção da empresa pelo Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER). No DNER, também exerceu diversas funções, de motorista a desenhista arquitetônico e topográfico. Em 1974, foi transferido para Altamira (PA), onde concluiu o ginasial e o curso técnico de Administração de Empresa no Instituto Maria de Mathias, onde foi um dos fundadores e vice-presidente do grêmio estudantil do mesmo nome. Casou-se, em 19 de março de 1977, com Maria Fátima Araújo. Tem cinco filhos: Adailton. Adailson, Romulo, Marcia e Giselle. Em 1984, retornou para Imperatriz. Formou-se em Comunicação Social com extensão em Jornalismo pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). É membro da Academia Açailandense de Letras, cadeira nº 22, da Academia Imperatrizense de Letras, cadeira nº 07. Autor de quatro livros: Cada Poesia Uma História, Meias Metades Histórias de vida, Contadas em Pedaços, Um Punhado de Poesia e Uma Mão Cheia de Prosa, Encontro Entre Poesias e Contos e participante de duas Antologias.

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