A penumbra do meu quarto foi atacada por luzes que se infiltraram pelas frestas da janela, tais quais pinceladas em uma tela escura. Elas eram contrastantes: uma luz quente e vermelha, e outra fria e azul, alternando de maneira ordenada. Embora tenham sido suficientes para me acordar, o que realmente me arrancou do torpor da sonolência foi um barulho impertinente, como se alguém batesse à porta, seguido de um grito que ecoava com urgência.
Não sabia que horas eram; todavia, devia ser bem tarde da madrugada. Levantei na quase escuridão, tateando os objetos familiares que se espalhavam pelo quarto, como sombras em um labirinto. A cada passo, meu coração pulsava mais rápido, enquanto eu ziguezagueava pelo espaço até me deparar com o interruptor, quase como um tesouro escondido. Acendi as luzes e um calafrio percorreu minha espinha; estava tomada pelo medo, pois era nesse horário que as notícias ruins costumavam chegar aos seus destinos.
Meu coração estava acelerado, pulsando ao ponto de escapar do meu peito. Tentei responder àquele que me chamava enquanto seguia na direção do som. No entanto, ao dar por mim, um frio cortante subiu pela minha coluna; a adrenalina disparou ao perceber que as luzes brilhantes eram de uma viatura policial. O barulho da sirene quase tácito ao longe reverberava no ar silencioso, como um aviso ominoso, e a angústia me envolveu, pesada como uma nuvem escura.
“Boa noite, senhora.” Custei a responder; meu corpo estava trêmulo. Quando finalmente consegui abrir a boca, ele começou a relatar: “Fomos chamados para atender à ocorrência de um corpo encontrado próximo a um depósito de bebidas. Não temos sua identificação, mas, por algum motivo, indicaram que este poderia ser o local onde ele morava, por isso viemos constatar”. As palavras dele soavam distantes, como se estivessem vindo de um lugar que não era o meu. Em meio ao choro que escorria pelo meu rosto, tentei raciocinar — um exercício difícil. A verdade é que eu não conseguia entender. O medo e a confusão se entrelaçavam, enquanto a realidade começava a se desdobrar de forma cruel diante de mim.
“Senhor, meu marido é vigia de um depósito, será esse?”. Lembro que essa frase saiu de minha boca balbuciada, arrastada, como se cada palavra fosse uma luta para sair. Em seguida, implorei: “Não pode ser ele, por favor, não é ele”. Com as mãos trêmulas, saquei o celular e comecei a ligar para o meu esposo, cada toque no botão parecia um grito silencioso por esperança. Ele não atendia. A incerteza pairava, como uma sombra pesada, transformando tudo ao meu redor em um mistério angustiante, enquanto eu olhava desesperadamente para o horizonte, como se ele pudesse aparecer a qualquer momento.
Ao sair do meu momento de transe e anestesia, a pergunta sem resposta sobre por que ele não atendia se transformava em um monstruoso réquiem em minha mente. O desespero crescia como uma onda avassaladora, e as lágrimas escorriam incessantes pelo meu rosto. O policial, com seu semblante grave, informou que não haviam encontrado nenhuma identificação e, em um tom neutro, disse que eu precisaria ir averiguar e reconhecer o corpo. Meu coração disparou ao ouvir aquelas palavras e, em meio à dor dilacerante, uma sequência de imagens de momentos felizes juntos inundou minha mente. Como eu poderia fazer isso? Era o mesmo depósito…
A viatura seguia seu percurso, mas meus pensamentos estavam paralisados, incapazes de processar a realidade. Eu continuava a chorar, ligando freneticamente para várias pessoas, na esperança de que alguém pudesse trazer boas notícias. Mas ninguém parecia saber de nada; a cruel verdade se firmava em minha mente: eu poderia realmente perdê-lo.
Ao chegar, um longo corredor se apresentou à minha frente, e eu fui amparada, já sem forças para andar sozinha. Meu corpo estava frio e trêmulo; o choro, que havia sido contido, irrompeu de maneira estridente, como um grito sufocado. A luz fria do corredor refletia minha angústia, e eu mal sentia o toque daqueles que me guiavam, flutuando em um mar de desespero, um eco de memórias fragmentadas ameaçando me engolir.
“Não, meu amor, isso não pode estar acontecendo. Ele não, por favor!”. Eu gritava essas palavras, na esperança de que pela força do meu grito pudesse reverter a realidade, de que tudo aquilo fosse um pesadelo do qual eu apenas acordaria.
Sentaram-me em uma cadeira fria; trouxeram um copo d’água que eu hesitei antes de aceitar, uma suspeita inquietante me dizia que havia algo contido ali, algo que queriam que eu tomasse para silenciar meu desespero. O tempo se tornava um conceito vazio, a cada segundo me sentia mais alheia ao que se passava ao meu redor. Não conseguia lembrar quanto tempo havia passado naquela posição, inerte e quase morta por dentro, enquanto a realidade se desvanecia em um borrão opaco, como se eu estivesse assistindo a um filme distante, incapaz de sentir a dor pulsante que me consumia.
Quando finalmente me levantei, um som límpido e inefável atravessou o silêncio opressivo que me envolvia. Era o toque do meu celular. Meu coração disparou; era meu esposo me ligando. Suas palavras eram como um bálsamo para minha alma atormentada: ele estava bem, nada tinha acontecido com ele. Por um breve momento, a esperança floresceu em meu peito.
Mas essa sensação de alívio foi abruptamente interrompida. No instante em que seu riso ainda ressoava na linha, ouvi choros e gritos vindo da entrada, um som que cortou o ar como faca afiada. A verdadeira esposa de seu finado esposo estava ali, seu lamento ecoando pela sala, trazendo de volta a dura verdade que eu tentava desesperadamente ignorar.
Todas aquelas sensações que outrora me dominavam agora refletiam no rosto dela, a verdadeira esposa de seu finado esposo. Enquanto a voz do meu marido acalmava meu coração em frenesi, eu observava a cena, tomada por um misto de medo e confusão. Minha mente girava em um turbilhão de pensamentos e emoções que se entrelaçavam, tornando difícil distinguir o que era real e o que fazia parte do meu desespero.
Diante de tudo isso, uma coragem inesperada surgiu em mim, como se o peso da situação me forçasse a expressar um segredo guardado a sete chaves. Mas, enquanto lutava para organizar meus próprios pensamentos, uma frase ecoou em minha mente, e, confusa, não sabia se a havia falado em voz alta ou se apenas a tinha pensado: “Ainda bem que não era o meu”.
SOBRE O AUTOR – Iranildo de Souza Miranda Luz – Recém-formado em LETRAS – LICENCIATURA EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA, pela UEMA (Universidade Estadual do Maranhão) – Campus Pedreiras.
Sua trajetória acadêmica é marcada por uma paixão crescente pela escrita, uma arte que sempre o fascinou, mesmo quando a leitura não fazia parte dos seus interesses.
Hoje, com formação em Letras, busca aprofundar seu conhecimento na literatura e na linguística, além de compartilhar sua visão e criatividade por meio da escrita.
Está entusiasmado para explorar novas oportunidades que lhe permitam expressar sua voz e contribuir para o mundo literário.