Encravada no Nova Aurora, bairro de classe média de uma grande cidade, a São Silvestre estava cheia de gente quando Jaime Guerra, um novo morador, chegava de seu plantão. Eram 7h30, e essa movimentação o deixou perplexo. Viaturas da PM e do IML ocupavam a rua. Equipes de TV e jornais se acotovelavam. Algo dramático acontecera na casa de dois andares, a mais bonita da rua. Mas nem Dona Carmem — fofoqueira por vocação — imaginava que o casal que jazia na sala tinha problemas de relacionamento.
“A São Silvestre não é esse paraíso que eu imaginava”, pensou Jaime. “E o mundo tá longe de ser esse ‘lugar maravilhoso’ com o qual sonhava Michael Jackson”.
Em maio de 2008, aos 26 anos, o enfermeiro Jaime Guerra assumia seu primeiro emprego no Hospital do Servidor. Em outubro desse ano, casava-se com Ana Marinelli na igreja de Nossa Senhora da Paz, numa cerimônia simples. Eles se conheceram em 2006 por ocasião do Festival de Música da universidade. Aluna do curso de Serviço Social, ela ficou em segundo lugar na categoria “intérprete”. E feliz com os protestos da plateia: “Ana Marinelli, primeiro lugar. Esse júri é devagar!” Jaime era um desses inconformados e fez questão de lhe dizer isso logo após o evento. Daí em diante, namoro e casamento.
A vida conjugal ia muito bem, não fosse um pormenor: eventualmente, Ana era convidada para eventos artísticos. Nunca pensou em seguir carreira na música, mas gostava de cantar. Mas, quando convidada, retraía-se ante a objeção do marido.
“Não é não, e c’est fini”, gritou Jaime quando ela falou do convite de Carla Diaz, amiga e cantora da época da faculdade. Carla ia lançar uma música que versava sobre “amor e prazer”. Morena de olhos verde-claros e corpo escultural, Ana apareceria ao lado da amiga num videoclipe a bordo de um catamarã.
No dia seguinte Jaime pediu desculpas. E prometeu que esse tipo de destempero não se repetiria. Mas deixou claro que jamais diria “sim” a convites de tal natureza.
Ana se casou no ano de sua formatura. O salário de Jaime dava para manter a família e ela se acomodou com esse estilo de vida. Jaime decidiu ter um filho. Ana concordou, mas, — intimamente — não via a maternidade como uma vocação inata.
Aos 7 anos, Anabela era uma menina que adorava videogames e redes sociais. Mas, nos estudos… Certo dia os pais foram convocados à escola. Jaime acompanhava a esposa enquanto ela conversava com a coordenadora. E explodiu de insatisfação assim que entraram no carro:
— Bullying! Nossa filha envolvida com bullying! Não bastasse isso, as notas baixas!
— Não consigo acreditar.
— Isso é resposta, Ana Marinelli?! Isso é resposta?!
À noite, repreendeu Anabela, exigindo-lhe atitudes mais sociáveis e mais dedicação aos estudos. Ameaçou tirar-lhe o celular e os videogames. Muito atarefado, esperava que a esposa cuidasse de tudo. “Afinal, isso não era nenhum bicho de sete cabeças”, repetia em momentos de tensão.
A partir desse episódio, qualquer incidente servia para Jaime apontar a inaptidão da esposa para o papel de mãe. Fazia isso porque ela não era de alimentar discussões nem guardar rancor. À beira de uma crise, Ana tentou entabular algumas DRs. Sempre na ofensiva, Jaime insinuava cores nessa “amizade” com Carla Diaz. Desesperada, Ana correu para os braços da mãe:
— O casamento não é uma viagem tranquila. Águas turbulentas também estão nessa travessia. Para preservar a família, precisamos nos sacrificar. Paciência, filha!
— Paciência?! A minha já se esgotou há um bom tempo.
Ana concluiu que conflitos se resolvem com orientação profissional depois de ler sobre “Sobrevivência Conjugal”, num site especializado: “Os mistérios do recôndito da alma não são tão fáceis como um papo numa mesa de bar. É preciso conhecer o outro por dentro, sua intimidade”.
Mais encorajada, decidiu perscrutar esse tal “recôndito da alma” dela e do marido. Jaime descartou a ideia de terapia de casal, pois não via necessidade desse tipo de intervenção. Aceitava “dialogar”, mas não um tratamento convencional. Sugeriu um fim de semana num balneário perto da cidade. Ana imaginou que o encanto do mar poderia abrandar o tédio do cotidiano. Voltaram antes do dia previsto.
Mãe e filha conversavam sobre quase tudo. Aos 9 anos, Anabela já percebia a apatia entre os pais. E que a mãe valorizava o entendimento, ao passo que o pai se desviava de sua função paterno-conjugal. Apesar da idade, já ouvira histórias parecidas na escola.
Se essa situação podia piorar, Jaime agora se demorava na volta para casa. Desculpas não lhe faltavam. Ora um amigo o convidava para jantar; ora — já diretor do Hospital do Servidor — reunião com o secretário de saúde. Certo dia, quase duas da manhã, Ana encarou o marido. Numa reação impulsiva, Jaime a empurrou ao chão. Com luxação no ombro esquerdo, ela recorreu à mãe para levá-la a um hospital. D. Ana Maria sugeriu ajuda policial. Ana se negava a recorrer a qualquer órgão de proteção à mulher. Não gostava de ouvir falar de “violência doméstica” ou “Lei Maria da Penha”. Pensava na filha e nas amigas. E concluía: “Não, isso não!”
A suspeita de uma amante contribuiu para a ruína do casal: “Como negar algo que está nas suas atitudes, nas suas roupas. Olha, Jaime, eu tolero tudo, menos traição”. Diante das evidências, Jaime deixava implícita uma ameaça: “Se você pensa assim, por que não eu também”. Pela primeira vez, Jaime se sentiu acuado. Ana agia como uma nova mulher e já falava em separação.
Se a vida pode nos levar a mares inimagináveis e nos deixar em alguma ilha no meio do oceano, foi o que aconteceu com Ana. Com a pecha de “traída”, aceitou participar de um clipe de Carla Diaz. O casal já não tinha vida sexual, mas Jaime rangia os dentes só de imaginar algo mais íntimo entre Carla e Ana.
Em 2020, Carla reuniu amigos num restaurante para celebrar seu aniversário. E Ana foi a estrela da festa, cantando canções de autoria da amiga. Conversaram sobre a emoção de cantar, músicas autorias de Carla. E sobre a vida como “uma peça que não permite ensaios”. Um cenário que só um poeta do elevado quilate de Drummond conseguiria descrever: “O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar”.
E assim como numa ópera dramática, Ana e Carla flutuavam na confluência “mar-amor-amar”. Perdida no recôndito de sua própria alma, Ana acreditava que cabia ao tempo dizer o que a vida lhe reservava. Pensava na filha e no que Jaime seria capaz de fazer para tolher a liberdade que ela, a duras penas, estava conquistando.
O tempo passa incessante, com “fúria cega e irresistível”, como se rasgando corações. Os que ficam sentem seu ímpeto, e dos que se vão fica só a saudade.
Última noite de 2020. Um corre-corre ocupava toda a São Silvestre. Dona Carmem gritava aos quatro cantos: “Oh, Jesus! É o fim do mundo! Ana Marinelli, oh, meu Deus! Não dá pra acreditar!”
Algemado e conduzido por dois policiais, Jaime Guerra foi jogado num camburão da PM. Sabia que acabara de escrever a mais horrenda página de sua biografia. Ofegante, dizia a si mesmo: “Sorry, Michael! Este mundo jamais será igual ao mundo dos seus sonhos”.
SOBRE O AUTOR – (*) Eloy Melonio – Maranhense de São Luís, é professor, escritor e letrista. Graduado em Letras (FAMA/2007). Membro da AMEI e da APB (Academia Poética Brasileira/2018). Livros publicados: Dentro De Mim (2015) e Travessia (2021). Idealizou o “Dia Municipal da Poesia” (Lei 6.394). Concursos de poemas: 3º Lugar no III FESTMACPU (UEMA/2017) e 2º lugar no I Concurso de Poemas da APB (2024). Em 2021, recebeu a Medalha do Mérito Legislativo da Câmara Municipal de São Luís. É colunista de alguns sites, entre eles o FACETUBES (APB) e o Blog do Ed Wilson.
6 respostas
Feliz por ver (e reler) meu conto “Jugo e Liberdade” neste importante órgão de divulgação literária. Parabéns, prof. Marcos Fábio. E sucesso para todos nós!
Eloy, acabei de ler seu interessante conto e, gostei.
Infelizmente, certos casamentos não terminam bem, são casais que se unem, sem terem empatia de almas e boa educação.
Pois é, Alcina, cada casal, uma história. Cada história, um desfecho.
Parabéns, querido amigo, pelo primoroso conto!!
Seu conto é a realidade brasileira. Hoje a maioria dos casais não conhece o amor ágape.
Parabéns pela escrita.
Na verdade, o casamento é uma união de duas pessoas que, em teoria, precisam estar juntas. Na alegria e na tristeza… E aí, vem a chuva, e cada um abre sua sombrinha.