terça-feira, 10 de dezembro de 2024

UM CONTO AOS DOMINGOS – #005 – O COPO E O CORPO (Humberto Barcelos)

Publicado em 3 de novembro de 2024, às 8:08
Imagem: Print do jornal O Progresso.

Ele acordou com a boca amarga, o cheiro rançoso da cachaça ainda grudado na pele, os olhos ardendo sob a luz que invadia a janela mal fechada. Tentou se levantar, mas as pernas não obedeceram de primeira. Um enjoo denso subiu do estômago até a garganta. A mão tremia quando tateou a mesa ao lado da cama, procurando a garrafa. Encontrou. O gole foi longo, desesperado, como quem precisa de ar depois de quase se afogar. O líquido queimou a garganta e o fez tossir. Mais uma manhã.
João era o nome dele. Poderia ser qualquer outro, mas era João. Um homem que já tinha sido muito, mas agora era só uma sombra do que restava. Cabelos sujos, barba por fazer, as unhas amareladas de tanto tabaco. Não sempre fora assim. Tinha sido bancário, casado, pai de dois filhos. Mas o álcool levou tudo. Começou devagar, com uma cerveja aqui, um whisky ali, até que, de repente, a vida dele virou um ciclo de ressaca e copo cheio.
O cheiro de mofo e de cachaça velha infestava o pequeno apartamento de um quarto onde morava há cinco anos. A cama era um colchão jogado no chão, as roupas espalhadas, o banheiro com o espelho quebrado e a pia sempre suja de vômito seco. O aluguel estava atrasado. Fazia semanas que não pagava. O síndico já tinha passado umas três vezes, batido forte na porta. João prometia, sempre prometia, mas nunca cumpria.
O telefone tocou. Ele ignorou. Não tinha quem quisesse falar com ele. Há meses que não via os filhos, há anos que não falava com a ex-mulher. Amigos? Não existiam mais. A bebida havia espantado todos, um a um. No trabalho, depois de tantas faltas, foi demitido. As demissões eram rotineiras, mas essa última, como se fosse a gota d’água, selou seu destino. O que veio depois foi uma espiral.
Levantou-se com dificuldade. Na cozinha, as moscas zumbiam em volta de restos de comida velha. Ele abriu a geladeira e encontrou uma garrafa pela metade, o líquido já meio sem gosto, mas isso não importava. Virou de uma vez. O alívio foi imediato, quase como um bálsamo. O corpo relaxou. Apagou o que restava de dor, de culpa, de saudade. João tinha aprendido que, se bebesse o suficiente, nada mais doía. A lembrança dos filhos, do trabalho, da casa com quintal onde morava… tudo desaparecia no vazio de uma garrafa.
O que não desaparecia era a culpa, mas ele já estava acostumado a ela. Viviam juntos, ele e a culpa, como velhos companheiros de quarto. Ela lhe sussurrava ao ouvido, lembrando o que havia perdido. Ele respondia com mais um gole. Quando a garganta queimava e os pensamentos ficavam mais lentos, sabia que tinha ganhado mais uma rodada. Pelo menos até a próxima ressaca.
Na rua, o sol batia forte. João saiu de casa sem destino certo. Cambaleava pelas calçadas, tropeçando nas próprias pernas, o suor escorrendo pela testa. Parou no bar da esquina, onde já o conheciam bem. Um olhar para o dono bastou para o copo de pinga aparecer na sua frente. Ele sorriu, aquele sorriso triste de quem sabe que não tem mais volta, mas que ainda encontra algum consolo no fundo do copo.
— Hoje tá mal, hein, João? — comentou o dono do bar, enxugando um copo com um pano encardido.
— Como sempre — respondeu, antes de virar o copo de uma vez.
João olhava ao redor, a cabeça girando com os rostos que pareciam se mesclar no barulho do bar. Conversas cruzadas, risadas, gritos. Nada daquilo fazia sentido, mas também não precisava. O importante era que o copo estivesse sempre cheio. A cachaça era a única companhia fiel, a única que nunca o deixava. Todos os outros tinham ido embora, mas ela ficava.
A noite caiu rápido, como sempre. João mal percebeu o tempo passar. O bar já estava esvaziando quando ele levantou, cambaleante. Jogou umas moedas no balcão e saiu, o mundo girando ao seu redor. As ruas estavam vazias, e o vento frio lhe cortava a pele, mas ele mal sentia. Estava anestesiado, protegido pela camada de álcool que envolvia seu corpo. O estômago revirava, mas ele sabia que, se vomitasse, era só beber mais um pouco e tudo passaria.
Chegou à beira do rio Tocantins que margeava a cidade, um daqueles lugares onde ele costumava ir para pensar. Ficava ali, olhando a água correr, sentindo o cheiro típico que subia do lodo. Naquele momento, a bebida já começava a perder o efeito. A cabeça doía, a garganta ardia, e ele sabia o que estava por vir: a culpa, a dor, a memória de tudo o que tinha sido e perdido.
João sentou-se na beira do rio, as pernas balançando no vazio. Pegou a garrafa que tinha trazido consigo e olhou para ela, como se fosse um antigo amigo. Virou mais um gole, talvez o último da noite. O céu estava claro, apesar da escuridão. As estrelas pareciam zombar dele, cintilando lá em cima, tão longe de sua realidade. O barulho da água era quase hipnótico. Sentiu o corpo pesado, os olhos querendo fechar.
Mas, antes de dormir, antes de apagar mais uma vez naquela noite, ele pensou, só por um instante, que talvez… Talvez, se bebesse mais um pouco, tudo ficaria bem. E então, fechou os olhos.
A garrafa escorregou de sua mão e rolou pelo chão sujo.

Imagem cedida pelo autor.

SOBRE O AUTOR – Humberto Cupertino Barcelos nasceu em Formosa, GO, mas reside no Maranhão desde a infância. Por isso, se identifica como “goianense”, uma fusão de goiano com maranhense. É graduado em Letras – Língua Portuguesa e pós-graduado em Docência do Ensino Superior, além de possuir uma segunda licenciatura em Marketing Digital. Membro da Academia Imperatrizense de Letras, onde ocupa a cadeira 17, lançou, nos últimos anos, os livros “Viver Não é Suficiente” e “Onde Está a Poesia?”, ambos em verso, além de “A Moça de Pele Marrom” e “A Noiva do Rio”, em prosa, nos formatos impresso e audiolivro. Através das redes sociais, Humberto realiza um trabalho contínuo de divulgação da literatura maranhense, apoiando as iniciativas das Academias de Letras e seus acadêmicos. Seu objetivo é aproximar a comunidade, especialmente os jovens, dos projetos promovidos pelas Academias, com foco na educação literária.

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