Havia uma cabana isolada no meio da floresta Manto Negro. A estrutura era antiga, acinzentada, com teias de aranha a cada passo, quase completamente destelhada e apenas com duas largas janelas sinistras, que projetavam sombras dançantes conforme a luz entrava. Ninguém sabia dizer ao certo há quanto tempo ela estava lá. Alguns diziam que ela existia desde que a cidade foi fundada. Já outros murmuravam que ela já fora o lar de bruxas que viviam bem ao fundo da floresta. As lendas continuavam sendo passadas geração após geração, mas uma coisa permanecia imutável: ela era um rito de passagem para qualquer jovem inconsequente como eu.
Quando jovem, minha mãe me disse que os mais velhos traziam até mesmo crianças aqui. Ela me confessou que vomitou de medo e desespero ao chegar a sua vez quando completou seus 17 anos. Desde então, ela jurou nunca mais fazer algo parecido de novo. E cá estava eu, no auge dos meus 20 anos, com medo de uma lenda urbana. Mas qualquer um teria no meu lugar.
A lenda dizia que naquela cabana vivia alguém. Homem, mulher, bruxa, feiticeiro, fantasma ou ser demoníaco de outro mundo. Vários moradores já afirmaram terem visto luzes acesas, luzes piscando ou uivos fantasmagóricos vindos daquela direção. Todos diziam que a tradição da cidade havia começado há séculos atrás quando um assassinato macabro aconteceu ali. O crime permanece um mistério que assombra os lares dos moradores locais desde então. A regra era que os jovens andassem até a cabana, batessem na porta três vezes e logo em seguida dessem as costas devagar. Então, você deveria trilhar o caminho de volta sem correr e então terá completado o rito. Todos que participaram falavam que, ao caminhar de volta, começavam a ouvir sussurros, corvos grasnando e o mais aterrorizante: o som da porta se abrindo lentamente bem atrás deles.
A maioria começava a berrar e correr e se juntava aos amigos que gargalhavam espreitando pelos cantos. Os demais que ousavam se virar, mesmo que só um pouco, nunca contaram o que tinham visto; se é que sequer viram algo, petrificados pelo medo.
Um empurrão de leve em minhas costas me tirou do torpor.
– Anda logo, Mila – disse a voz de um dos meus amigos atrás de mim.
Suspirei, engolindo em seco. Fechei os olhos por dois segundos e encarei a cabana mal-assombrada. Meus pés ganharam vida e iniciei minha caminhada. O frio tomou conta de meu corpo, causando pequenos arrepios em minha pele; minha respiração ofegante saindo como fumaça de gelo. A caminhada pareceu uma eternidade. Quando enfim cheguei à porta, ergui meu punho trêmulo fechado e dei três batidas lentamente. Engolindo em seco mais uma vez, dei as costas e refiz minha caminhada; meus instintos gritando para que eu corresse. Um passo de cada vez, comecei a me distanciar daquele pesadelo rumo a minha liberdade.
Então meus pelos se arrepiaram e eu escutei. Bem atrás de mim, a porta começou a se abrir bem devagar. Fechei os olhos e permaneci com meus passos de tartaruga. Um terror tomou conta de mim ao sentir uma queimação em minhas costas. Eu estava sendo observada. Eu sentia isso. Fechei os punhos; minhas unhas quase rasgando a pele sensível das palmas e minha boca ficou seca. Eu não pude distinguir o que tomou conta de mim, mas algo me dizia para me virar. E então assim eu fiz.
Me virando bem devagar, tentei captar algo usando a visão periférica. Talvez ofuscada pelo medo e paralisada pelo horror que tomava conta de mim naquele momento, meus olhos captaram uma espécie de visão distorcida do que quer que fosse aquilo. Uma sombra monstruosa. Uma silhueta humanóide. Um ser de outro mundo.
Aquela visão de milésimos de segundos me foi tomada repentinamente. Um vulto passou por cima de mim e dei um berro ao ser forçada a ir em direção ao chão. Toda a magia sinistra se desfez quando encarei o rosto de minha amiga Claire, que esboçava um sorriso de orelha a orelha e enxugava uma lágrima no canto do olho direito, morrendo de rir de mim.
– Caramba! Precisava ver a sua cara! Você estava quase se borrando de medo!
– Isso não tem graça nenhuma… – protestei.
– Espera só até todos da cidade verem isso – James surgiu com seu celular em mãos filmando meu rosto em todos os ângulos possíveis. – Isso sim é o que eu chamo de viralizar!
Me levantei ao mesmo tempo que tirava a poeira das minhas roupas e lhes dirigia um olhar incrédulo.
– Não existe fantasma nenhum, não é? Vocês orquestraram tudo!
Eles se entreolharam ainda rindo.
– Como acha que a lenda se manteve por tanto tempo?
Balancei a cabeça ainda tentando recuperar o fôlego e James se aproximou de mim com uma calma sinistra.
– Agora você faz parte daqueles que conhecem o segredo da cidade e deve guardá-lo mais do que ninguém.
Havia uma seriedade quase autoritária no seu tom de voz e na forma como ele falou. Era como se eu tivesse entrado para uma sociedade secreta.
– Ninguém pode saber o que acontece aqui, Mina – Claire reafirmou, séria. – A cidade mantém esse segredo por um motivo. Tem sido assim por séculos e assim deve ser mantido. É nosso dever.
– É uma grande idiotice – murmurei já caminhando até meu carro. – Não acredito que vocês me convenceram a vir até aqui. Vou embora! Já perdi tempo demais com essa besteira!
Virei as costas para eles e trilhei meu caminho de volta até a entrada da floresta. Não tinha me dado conta até então de que aquele lugar era um labirinto. As árvores pareciam iguais. A brisa parecia igual. Ao longe, escutei um trovão e os primeiros respingos começaram a molhar as folhas.
– Merda! – xinguei olhando ao redor e sendo tomada por um horror ao ver que meus amigos haviam desaparecido. Revirei os olhos. – Isso ainda faz parte do desafio idiota? Tá bem, podem sair agora!
Outro trovão ribombou acima de mim e fiz menção de abraçar o corpo para me aquecer. Eu precisava encontrar o meu carro e dar o fora dali.
– Pessoal! – eu gritei mais uma vez. – Acabou a graça! Já podem sair! A gente tem que voltar!
A brisa fria já começava a congelar meus ossos e meus dentes começaram a bater.
– Claire! James! – um horror tomou conta de mim. Onde diabos eles estavam?
Dane-se! Enfiei a mão no bolso à procura da minha chave e corri às cegas. Ao mesmo tempo, tentava dizer a mim mesma que aquilo não passava de uma brincadeira idiota e que meus amigos estariam bem do outro lado. Arquejei ao ouvir mais um trovão e instintivamente olhei para a cabana. Uma luz se acendeu. Gritei e desatei a correr sem rumo, mas a floresta era um labirinto.
Algo pesado caiu na minha frente repentinamente. Meus olhos correram pelo objeto estranho até me dar conta de que era o corpo de James.
Abri a boca em um grito silencioso, cobrindo-a com as mãos. Um grito cortante ecoou pela floresta.
– Claire? – eu chamei já dando a volta.
– Mila! – a voz dela soou ao longe.
Fiz todo o caminho de volta sem me importar com o que eu fazia. A adrenalina corria como nunca em minhas veias.
O corpo de Claire estava sem vida aos pés da escadaria da cabana. A luz piscava loucamente.
Eu comecei a ouvir passos e meu corpo ganhou autonomia. Girei o tronco já pronta para voltar à floresta…
Uma batida na porta.
Duas.
Três vezes.
E então a porta se abriu lentamente atrás de mim.
A morte havia chegado.
Meus olhos me guiaram em um suspense imensurável até o terror que se apresentava diante de mim.
E nada, nenhuma lenda ou conto de horror, poderia ter me preparado para o que eu iria testemunhar.
SOBRE A AUTORA – Artemisa Lopes – Jornalista, leitora, escritora, colunista e também é autora independente dos livros “Os Campeões das Estrelas”, “O Leonino Que Vira Estrela” e “Os Cavaleiros de Merlin”, Vol 1 e 2, obras já lançadas na Amazon. Gosta bastante de livros de fantasia, mas também é uma curiosa e entusiasta fã em particular de histórias de suspense, mistério e True Crime, e curte um bom enemies to lovers. Também é produtora de conteúdo literário em suas redes sociais: @artemisalopes_. Tomou gosto pela leitura e escrita ainda na infância, com HQ’s e gibis da Turma da Mônica e os livros da série Vagalume, sem imaginar que um dia iria dar vida às letras que colocava no papel. Quando não está lendo ou escrevendo, você sempre vai encontrá-la maratonando sua série ou anime preferido, ou consumindo conteúdos de casos criminais.