sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

De contos, causos e oralidades – A gente do parque

Publicado em 24 de agosto de 2024, às 8:21
Fonte: Helena Frenzel – romanista, letripulista, contadora de causos.
Imagem: FreePik Premium.

Se eu dissesse que foi verdade, diriam que foi invenção, e como não gosto de ficar discutindo, conto o que aconteceu então.

          Pois toda segunda-feira, ali pelas quatro da tarde, a mulher da mochila tinha um tempo livre e usava essa horinha para ir dar uma volta num parque.

          O verde oásis, naquele bairro, era uma benção para toda a cidade. A entrada era livre e o local, embora não fosse um zoológico, era um tipo de abrigo para animais resgatados de algum perrengue causado por gente. Havia gatos selvagens, veados, alces, javalis, coelhos, porquinhos da índia, galinhas d’angola, perus, pavões, pombos, corujas e até búfalos. Cada qual ficava no seu “quadrado” ou gaiola, como se costuma ver num zoológico, e havia muito verde, muitas árvores por todo lado. Aquele parque era o pulmão da cidade!

          Ao redor do parque havia bairros e a universidade ficava “alpegado”, de maneira que além de ser frequentado por famílias com crianças pequenas, era também um lugar de descanso para a gente que estudava e trabalhava nas redondezas, gente que geralmente se comunicava em inglês, já que a universidade e as firmas do local reuniam pessoas de vários lugares do mundo que vinham estudar e trabalhar na Alemanha.

          Pois numa dessas segundas-feiras que a mulher da mochila tirava para ir desopilar a cabeça no parque, ia ela tranquila descendo a ladeira que começava na curva onde fica a gaiola dos gatos selvagens quando viu, lá embaixo, três jovens e uma senhora numa cadeira de rodas. A senhora, claramente, queria que os jovens empurrassem a cadeira ladeira acima, coisa de que eles, parecia, não estavam muito a fim não. A mulher da cadeira era baixinha, “entroncadinha”, quase sem-pescoço, como se costuma dizer no Maranhão, usava uns óculos redondos e tinha um corte de cabelo que fazia lembrar a Velma do desenho Scooby-Doo. A mulher da cadeira de rodas queria que os jovens a empurrassem ladeira acima, e eles davam a impressão de não estarem entendendo “nadica”.

          A mulher da mochila, vendo o grupo, não sei por que motivo, achou que talvez se tratasse de um caso comum de demência, como tantos pelo mundo afora, e que os jovens talvez fossem parentes da senhora, e que se alguém chegasse perto ela diria que estava sendo sequestrada ou coisa assim.

          Quando a mulher da mochila se aproximou do grupo, a senhora da cadeira de rodas olhou para ela e perguntou em alemão, num tom bastante rude, se ela sabia falar inglês, e a mulher da mochila respondeu em alemão, num tom amigo, que sim, mas que podia também usar o alemão, ao que a mulher da cadeira interrompeu com um “Não! Quero é que eles me levem lá pra cima!” E vendo que a mulher da mochila nada dizia, a senhora começou a espernear gritando “Filha da puta desgraçada!“, fora de si, enquanto os jovens do grupo se olhavam confusos. A mulher da mochila tomou um susto por conta do xingamento gratuito e achou que era caso de demência mesmo, guardou de volta o sorriso e seguiu seu caminho. Já numa distancia de segurança, olhou pra trás e viu como o grupo deixava a mulher da cadeira de rodas bufando em frente à gaiola dos búfalos e seguia passeando como se nada, batendo papo em inglês.

          A mulher da cadeira, visivelmente alterada, passou a bufar e a xingar mais alto ainda, movendo a cadeira de rodas pra lá e pra cá. Aquela cena, ao que parece, era algo normal para os visitantes, dado que ninguém ligava para os xingamentos da idosa ou tentava acalmá-la, nem sequer olhava para ela, o que reforçou na mulher da mochila a hipótese do caso de demência. Ela circundou o parque tratando de se recuperar do susto do xingamento inesperado, pois, afinal de contas, ela estava ali era para espairecer e não pra se estressar ainda mais com os problemas dos outros.

          Quando nossa protagonista chegou num ponto em que podia ver, bem de longe, a gaiola dos búfalos, viu um rapaz com capacete de moto e roupa de couro, todo de preto, que vinha correndo desembestado até que parou atrás da senhora e começou a empurrar a cadeira em direção ao topo da ladeira. A idosa não deu um pio e se deixou levar tranquilamente, como se o rapaz estivesse sendo esperado por ela.

          A mulher da mochila, sem saber o que pensar sobre o acontecido, passou ainda um bom tempo observando como o rapaz empurrava a cadeira e parecia seguir as instruções da senhora. Ela ficou observando os dois até que os viu desaparecer por detrás da gaiola dos gatos selvagens, bem ali no topo da ladeira do sumiço, que é como a mulher da mochila passou a chamar o lugar a partir daquele dia.

          Terminada a volta, nossa protagonista seguiu em direção à entrada do parque, que também era a saída, e ainda estava pensando no insólito da vida quando notou, a poucos metros do portão de entrada, a presença de carros da polícia e de uma ambulância, todos com luzes azuis piscando, sinalizando que alguma coisa havia ocorrido.

          “Ai, meu Deus, que eu não gosto de ver sangue!“, pensou nossa caminhante, mas ao passar pelo burburinho não pôde resistir olhar para o local em que os policiais tentavam organizar o trânsito. Conseguiu ver uma moto toda estropeada debaixo das rodas de um ônibus e, perto dela, entre o povo dos primeiros socorros, um corpo vestido de preto. Piscou duas vezes, estremecendo, e seguiu seu caminho pensando, cruz credo!, no tipo gente que a gente costuma encontrar pelos parques.

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