sexta-feira, 23 de maio de 2025

A insegurança jurídica da atuação das guardas municipais: a necessidade da reavaliação do seu papel constitucional para uma melhor prestação de serviço

Publicado em 25 de agosto de 2024, às 16:03
Fonte: Elson Mesquista Araújo – Advogado, jornalista, escritor, membro da Academia Imperatrizense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Imperatriz.

Resumo

A atuação das guardas municipais no Brasil se confunde com a da Polícia Militar, com   a primeira vindo a invadir prerrogativas da segunda. Tal fenômeno tem contribuído para um processo contínuo de insegurança jurídica, pois muitas dessas ações, que no primeiro grau, viram processo e às vezes condenações, são desfeitas pelos tribunais superiores. É isso que tem provocado, além de insegurança jurídica, avanço na impunidade. O presente estudo busca, não só evidenciar um problema que só   cresce no País, mas por meio de pesquisa bibliográfica mostrar as providências em andamento para sanar essa situação e promover a pacificação legislativa constitucional do papel que cabe a cada uma dessas forças de segurança.

Palavras-chave: Guardas municipais, mutação constitucional, segurança pública, insegurança jurídica, polícia militar

Abstract

The actions of municipal guards today in Brazil are confused with that of the Military Police, with the former invading the prerogatives of the second. This phenomenon has contributed to a continuous process of legal uncertainty, as many of these actions, which in the first instance, turned into proceedings and sometimes convictions, are undone by higher courts and this has caused, in addition to legal uncertainty, and advancement in impunity. This study seeks not only to highlight a problem that is only growing in the country, but through bibliographical research to show the measures in progress to remedy this situation and promote the constitutional legislative pacification of the role that each of these security forces has.

Keywords: Municipal guards, constitutional change, public security, legal uncertainty, military police

Introdução

Ao rever-se a história do Brasil, percebe-se que a segurança pública sempre foi uma preocupação nas pequenas, médias e grandes cidades. O tema ganha mais força nos períodos de eleição quando os candidatos incluem nas suas plataformas, como meta, combater a violência. As propostas, na sua maioria, partem dos candidatos majoritários, que são eles,  prefeitos, governadores e presidente. Uma verdade tem sido imposta quando se fala em segurança pública, tudo que foi feito até a modernidade não tem tido os resultados esperados, e a insegurança só aumenta.

O Poder Central não tem tido competência para deter o avanço da criminalidade, controlada pelas facções que dominam o País, até mesmo de dentro dos presídios.  Há, ocasionalmente pequenos recuos, como mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que mostra que a taxa de mortes violentas intencionais caiu 2,4%  no País em 2022, na comparação com 2021. Conforme o Fórum, são consideradas mortes violentas não intencionais aquelas decorrentes de homicídios dolosos, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, intervenção policial e morte de policiais. Apesar do recuo, ainda não há motivos para comemorações. Clara a ausência de políticas públicas que efetivamente proporcione a segurança que tanto os brasileiros clamam

Constitucionalmente quando se fala em segurança pública logo o pensamento se fixa nas forças de segurança. No poder de polícia do Estado Brasileiro para prevenir e investigar os crimes na esfera dos entes federativos. O legislador originário definiu na Constituição de 1988 quais são essas forças e o papel e cada uma, no artigo 144, num capitulo exclusivo destinado à segurança pública. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL 2000, p. 302)

“ A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos seguintes órgãos: Policia Federal, Policia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Policiais Civis, Policias militares e corpo de bombeiros militares.

Em 2019, a Emenda Constitucional 104, acresceu nesse dispositivo o inciso VI, ao criar no âmbito federal, estadual e distrital a Polícia Penal que nasceu, com furor das rebeliões nos presídios, em 2019, com o fim de fazer a segurança dos estabelecimentos penais. As outras policiais, a exemplo da penal, também têm no berço da Constituição de 1988, definidas suas respectivas funções

É dessa forma, que a Constituição Federal estrutura o aparelho estatal   para prevenir e combater o crime no País. No entanto, uma previsão constitucional, nesse mesmo capítulo tem provocado confusão e insegurança jurídica carecendo de uma atualização legislativa que defina seu real papel. Trata-se das guardas municipais. Presente no § 8º do artigo 144, o texto constitucional assegura que os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

O advento do Estatuto das Guardas Municipais, em 2014, pode ser considerado um avanço legislativo na construção identitária das guardas municipais já que dele é possível se extrair os princípios que a elas norteiam, tais como a proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas, preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas, patrulhamento preventivo, compromisso com a evolução social da comunidade e o uso progressivo da força.

Ocorre que com o passar dos anos, e a iniciativa dos municípios de implantar as guardas municipais, o pouco número de policiais, e o aumento da violência, as guardas municipais, ou guardas civis acabaram elevadas, informalmente ao patamar de “policiais municipais”, sendo instituída uma verdadeira mutação do dizer do constituinte originário em relação ao seu mister. Nesse caso os prefeitos indiretamente acabam sendo seu comandante em chefe.  Tal fenômeno tem gerado uma verdadeira insegurança jurídica.

Na lacuna de uma atualização as demandas relativas à atuação das guardas chegam com frequência aos tribunais superiores com decisões que ora as legitima, outra desfaz o que foi feito. Tal fenômeno é, portanto, uma fonte de insegurança jurídica já que as guardas municipais, ao final, terminam executando um papel que constitucionalmente não é seu.

O presente estudo tem a intenção de não só evidenciar o problema e suas consequências, mas a necessidade de se resolver a situação, e demonstrar que já há em andamento nesse sentido para isso faz-se a leitura de publicações, acadêmicas e não acadêmicas sobre o problema.

O papel constitucional das forças de segurança

A Constituição Federal de 1988 (CF 1988) define com clareza o papel de cada uma das forças de segurança pública. A Polícia Federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União, se destina a apurar, prevenir, reprimir, infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens e serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas. Além disso, a prevenção e a repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins também estão entre as suas atribuições.

Seguem ainda, no âmbito da União, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) a quem cabe o papel ostensivo de patrulhamento das rodovias federais, a Polícia Ferroviária Federal (PFF) responsável pelo patrulhamento ostensivo das ferrovias, e mais recentemente, criada por meio de um Emenda Constitucional a Polícia Penal, que atua nos presídios federais. A mencionada emenda também autorizou os Estados a criarem as suas Policias Penais, com obrigação similar.

Nos Estados, por atribuição constitucional, além da Polícia Penal, há as policiais civis, que cumprem as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, exceto as militares, e ainda as policiais militares, que cumprem o papel do policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública,  e por último os  corpos de bombeiros militares,   a quem são incumbidas também  atividades de defesa  civil.

É dessa forma que a Constituição Federal estrutura o aparelho estatal   para prevenir e combater o crime no País, no qual não se enquadram as guardas municipais. Insertas no mesmo capítulo, estas têm papel bem definido. Aos municípios, de acordo com o texto constitucional, são assegurados, constituírem   suas constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

Isomorfismo institucional

Para explicar a confusão estabelecida quanto ao papel legal das guardas municipais estudiosos da matéria se utilizam da teoria institucional. Segundo Jorge Kotick Audy,  tal teoria, criada por Meyer em 1977, impulsionada em 1983 através de um artigo de DiMaggio e Powell intitulado “A Gaiola de Ferro Revisitada” descortinava uma abordagem que debatia o isomorfismo organizacional,  que é quando uma empresa copia modelo, processo ou aspectos de outra para obter maior visibilidade, competitividade, legitimidade ou unidade frente a seu campo organizacional.

Um campo organizacional, segundo o autor, é formado por um grupo de organizações que juntas constituem uma área reconhecida da vida institucional, podendo ser percebido entre parceiros, concorrentes, cadeias produtivas, verticais ou horizontais. Os quatro elos desta corrente são: Interação x Dominação x Informação x Pertença.

Recorrendo-se então ao isomorfismo institucional é possível compreender que, o que ocorre hoje com as guardas municipais é um processo gradual de homogeneização institucional em relação às policias militares. A partir da observação do caso que ocorre em Imperatriz, sudoeste do Maranhão, é possível dizer que diversos fatores contribuem para isso. A começar pelo treinamento, igual ao da Polícia Militar e ainda o fato do cargo de comando ser ocupado por um quadro com formação militar. Além disso, a farda, viaturas, o uso de armas e as aparições na mídia sobre abordagens, prisões e até blitz, corroboram para que no imaginário coletivo da cidade a Guarda Municipal local faz o mesmo serviço da Polícia Militar. Na cidade os guardas municipais não são vistos guardando prédios públicos ou  nas praças para prevenir vandalismo, mas sim nas ruas patrulhando e, a depender da ocasião, fazendo  até abordagens, seguidas muitas vezes de prisão.

Diante disso, é perceptível que esse continuo processo de homogeneização institucional das guardas municipais com a Polícia Militar, hoje a deixe cada vez mais longe de suas origens comunitárias, situação que tem dificultado a atuação delas em áreas como mediação de conflitos e a promoção da segurança cidadã. A militarização das guardas municipais

Assim, “as guardas municipais têm se configurado como um novo grupo profissional, capaz de canalizar reivindicações próprias e de gerar novas expectativas na população a respeito dos serviços de segurança pública” (OLIVEIRA JR, ALENCAR, 2016,p.27 )

As guardas municipais nos tribunais

Na ausência de uma readequação legislativa quanto ao papel constitucional das guardas municipais, os tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) têm cumprido esse desiderato com a consecução de julgados que cada vez mais reforçam o isomorfismo com a Polícia Militar. Ora referendam, ora refutam ações de policiamento nos municípios que viraram processo.

A decisão mais recente é de outubro de 2023, e é do STJ. . Em matéria veiculada em seu site o tribunal decidiu que guarda municipal integra segurança pública, mas não tem atribuições típicas de polícia. Tal entendimento partiu da Terceira Secção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ratificou, o já firmado pelo STF na ADPF 995, em Agosto de 2023, que as guardas integram o sistema de segurança pública contudo, não possuem as funções ostensivas típicas da Polícia Militar, nem as investigativas próprias da Polícia Civil.

            Dessa forma, diferente do que continua sendo praticado em muitos municípios, o STJ entende que as guardas não podem exercer ações como a investigação de suspeitos de crimes que não tenham relação com bens, serviços e instalações dos municípios. No caso concreto, a corte absolveu um réu acusado de tráfico porque as provas foram obtidas por guardas municipais em revista pessoal sem que houvesse indícios prévios para justificar a diligência.

            Em síntese, o colegiado compreende que embora a Constituição Federal de 1988 e a legislação federal não confira às guardas o patamar de polícia municipal, pode se admitir, em situações extremas, que seus membros realizem busca pessoal, mas apenas quando houver demonstração concreta de que a diligência tem relação direta com a finalidade da guarda.

Considerações finais

Mesmo as decisões recentes do STF e do Supremo, que reconhecem as guardas municipais como parte do sistema de segurança pública, não se pode garantir que doravante seja posta a termo a insegurança jurídica que paira sobre o exercício de sua atividade. São decisões ainda pouco difundidas e até desconhecidas e não se percebe, ao se observar o caso de Imperatriz, no sudoeste do Maranhão, nenhum esforço ou qualquer iniciativa para que seja estabelecido um protocolo legal de atuação. Quem comanda, e ainda seus membros, continuam a agir como se policiais militares fossem vindo a corroborar   para o fortalecimento do processo de isomorfismo.

No caso concreto, a partir das ações do órgão em Imperatriz, a postura militarizada o coloca cada vez mais distante de suas origens comunitárias. A percepção clara é que as guardas são instituições repressivas, e isso atrapalha a relação com a comunidade.

Dessa forma, surge a necessidade de se repensar o modelo de organização das guardas municipais, de uma maneira que venha a cumprir seu verdadeiro papel constitucional com eficácia afastando-se da postura militarizada,  e aproximando-se mais das comunidades. Uma guarda que seja capaz de mediar conflitos e promover a segurança cidadã de forma preventiva sem invadir, ou usurpar o papel bem definido da polícia militar.

Tal mudança passaria por uma discussão ampla, nacional, sobre a essência da natureza jurídica das guardas municipais, mas esse é um tema que ainda não alcançou a importância a ponto de que seja aberto um debate nacional. Trata-se de uma evolução perigosa pois o embrião do debate que hoje é apresentado é da militarização das guardas municipais.

No sentido original do papel das guardas não há nenhum projeto ou discussão em andamento. No âmbito da Câmara dos Deputados a discussão é quase nula. Quando aparece uma proposta, é para deixar mais confuso ainda o papel das guardas. É o caso do Projeto de Lei 1316/2021  que dia 23 de novembro de 2023 chegou à Comissão de Constituição e Justiça que de acordo com sua ementa, pretende alterar a redação do artigo 22 da Lei 13.022/2014 para assegurar que as guardas sejam chamadas de policias municipais.

Paralela ao Projeto de Lei que prevê a alteração da nomenclatura de Guarda, para Policia Municipal, aparece algo mais ousado, também originada na Câmara dos Deputados. Trata-se do Projeto de Emenda Constitucional 57 (PEC -57) que pretende mudar não só o nome, mas transformar as Guardas Civis Municipais em Polícia Municipal.  Com a assinatura de 326 assinaturas, a proposta foi protocolizada na Secretaria da Câmara Federal, no início de novembro de 2023.

Pela pesquisa realizada, é possível   constatar que tantos as decisões judiciais, que terminam por alcançar força legislativa, quanto no âmbito do legislativo, por enquanto, a ideia de militarização das guardas municipais   ganha espaço, em detrimento da ideia original de elas se constituírem num organismo cidadão, mais perto da população. A militarização das guardas municipais, portanto, é uma realidade mais bem próxima, caso o contraditório não se manifeste.

Referências

AUDY, Jorge Kotic: Isomorfismo institucional explica muita coisa. Disponível em: https://jorgeaudy.com/2013/07/09/isomorfismo-institucional-explica-muita-coisa/. Acesso em 19 de nov. de 2023

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal 2020

JÚNIOR , Almir de Oliveira,  ALENCAR , Joana Luiza Oliveira: Novas polícias? Guardas municipais, isomorfismo institucional e participação no campo da segurança públicaDisponível em:https://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/download/692/236/1703. Acesso em 20 de nov. de 2023

Reforma administrativa transforma Guarda Municipal em polícia: Jornal Folha Dirigida, São Paulo, 24, set 2021. Disponível em: https://folha.qconcursos.com/n/reforma-administrativa-guarda-municipal-policia Acesso em 10 de nov. 2023

Transformação de Guardas em Policias Municipais vira tema de projeto protocolado por frente parlamentar. Jornal Extra, Rio de Janeiro,9, de nov.2023. Disponível em: https://extra.globo.com/economia/servidor-publico/coluna/2023/11/transformacao-de-guardas-em-policias-municipais-vira-tema-de-projeto-protocolado-por-frente-parlamentar.ghtml  Acesso em 20 de nov. 2023

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicidade

Sites relevantes para pesquisa

Nós, do site Região Tocantina, queremos desejar, a todos os nossos leitoras e nossas leitoras, um FELIZ NATAL, repleto de fé, alegria, paz, saúde e felicidade.

E que as comemorações possam realçar nossos melhores e duradouros sentimentos.

FELIZ NATAL!

Publicidade