Imagine!
Disseram à criatura que ela não começasse o texto desse jeito, logo com essa palavra, mas ela nem tchuns, porque linguagem fora do cotidiano é curva fora do plano na cachola dela.
Desafio é escrever a realidade, coisa que – via de regra – difícil não deveria ser, já que há fatos, ainda que entortados, distorcidos, falsificados…
Pediram a ela, à criatura, que pelo amor dos deuses evitasse vícios de linguagem, mas é claro que ela nem pensou em acatar.
Lugar comum é coisa que Todo Mundo usa (assim com maiúsculas, em itálico), e sabendo que ela não era Todo Mundo, a pessoa insistiu no abuso de liberdade. Situação periclitante, risco exorbitante de perder a carreira brilhante que jamais teria no mundo editorial, a não ser que pudesse contar com a presença – da ausência – dos nobres colegas, que da nobreza nem parentes eram, mas não deixavam de se achar – grandes merrecas! – E isso porque haviam pedido a ela: “Favor não usar palavrões.”
Não querendo bater de frente (nem de costas) com o meio crítico, a criatura assumiu o protagonismo, roteiro e direção do escrito, incluindo a produção estilo-gramatical. E do Oiapoque ao Chuí, lugares bem conhecidos por quem não faltou às aulas de geografia quando criança em algum lugar do Brasil, optou a criatura por uma rota de fuga, rota de colisão direta com a norma, por pura teimosia lingüística, e com o trema tremendo no u, como antigamente se fazia com a lingüiça graficamente, mas que desde a década de 1990 não se deve fazer mais.
E questionada pelo manual instigante a criatura pensante, com letras maiores que o normal preencheu as lacunas do texto e, com erros gritantes fechou parágrafos sem nem saber onde se encontravam os tais.
Fez por merecer a pecha de maluca, dado que toda e qualquer norma, ainda que culta, sempre é uma vítima fatal (fatalíssima) mais do que morta (mortíssima!), como um dia foi o Latim, vulgarizando-se.
E a todo vapor o suor foi escapando da criatura pelos poros, enquanto pensava no quê iria escrever, um quê com jeito de “teimoso”, que nem acento gráfico tem porque não precisa, por ser palavra paroxítona terminada em -ó como “gostoso”, sem acento agudo nem grave porque não é “gostosó”, pois se assim fosse teria acento tônico e gráfico no último -ó (de “bocó”) e levaria outro nome que parece “oxiúro”, mas na verdade é “oxítona”!
Antes de mais nada, a criatura subversiva sentiu-se tomada pelo ruído ensurdecedor da palavra libertina e viveu uma perda irreparável de paciência com os caga-regras, gente de grandes letrinhas que odeia palabrotas, como se diz em espanhol.
No fundo do poço da agonia, já que o prazo de envio do escrito em pouco tempo terminaria, danou-se a pessoinha a correr por fora do tema e optou sem pena pela quebra do protocolo, a fim de chegar a um denominador comum, que se resumia, na telha dela, à importância vital da liberdade total para a criatividade, ainda mais nesses tempos bicudos de inteligência sem arte.
Numa tentativa desesperada de, como diz o Baleiro: entender “o subtexto da arte desmaterializada no presente contexto, reciclando o lixo lá do cesto”, a criatura chegou “a um resultado estético bacana” (1). E valendo-se da fortuna incalculável da língua e da música popular brasileiras, riqueza essa que é de causar inveja a qualquer idioma estrangeiro icônico, viu-se a criatura no aguardo de uma resposta cabal à pergunta que não quer calar, que é como falar do inferno sem citar o Diabo.
É bem verdade que a pessoa ficou encafifada, pensando no túnel às escuras com uma lanterna ao final (uma luz no fim do túnel!), ou com uma usina de ideias, ideia elétrica, coisa de causar espécie, de tão raro e anormal no contexto redacional de um gênero mais que formal jornalístico.
E como pano de fundo à matéria da qual trataria, recorreu a bichinha à sofisticada estratégia de usar, como uma caixinha de surpresas, a solução emblemática de bagunçar os sentidos a nível de enredo, que por conta de (ou melhor: por causa) de aparar as arestas do texto, estava ela certa de, ao embaralhar as cartas textuais, achar seu lugar ao sol naquele espaço do jornal, ainda que fosse só para criar polêmica nas redes sociais, porque o negócio, naqueles dias, era gerar engajamento e uma quantidade esmagadora de laiques – assim, aportuguesados.
Tomou então um gole d’água bem gelada e, calada, pôs-se a pensar na carreira meteórica que não teria nas panelinhas comunicacionais, jamais. E assim, com esses pensamentos tórridos no côco, chorou compulsivamente (quer dizer: com soluços e lágrimas ardentes) a falta de sucesso estrondoso que a vitória esmagadora contra as regras não lhe deu, porque não houve.
Corações e mentes libertários fazem de artistas líderes carismáticos, pelo simples fato de eles e elas saberem fugir ao dito comum, e de sempre terem (consigo) um baú de ideias que com chave de ouro se abre e se fecha, no qual o verdadeiro tesouro se esconde: a capacidade de não se enquadrar, nem se dobrando.
Dando uma de Julio Cortázar Rolando Lero, num tipo de congestionamento monstro de frases e palavras, reza a lenda literária que a criatura, sem pensar em mais nada, enviou sem delongas o artigo torto ao Diário e tratou de não pensar mais no caso, pois no pior dos cenários o dito seria recusado, e então morreria a Maria Preá e a Inês já estaria morta.
No dia seguinte, no entanto, qual não foi o seu espanto ao ver estampado nas bancas, nos triângulos dos quatro cantos, seu texto mais que banal, publicado na área nobre do famosíssimo jornal, dispensando apresentações e sem qualquer corte.
Parece coisa inventada, mas não é. É verdade e dou fé!
Nota da autora: Este texto reúne boa parte das expressões que um manual estilístico aponta como “clichê, vício de linguagem, lugar comum, etc.”, e sugere que se evite o uso “dos mesmos” ao escrever artigos para um dado periódico. Não se trata de crítica, foi apenas vontade de pular amarelinha (à la Cortázar), de driblar o verbo (à la Rolando Lero) e de, como sempre, deitar e rolar livremente na relva das palavras, feito cachorro vadio.
(1) Trechos da canção Bienal, de Zeca Baleiro.