Não sei dizer exatamente por qual motivo, mas é comum ouvir em sala de aula ou mesmo em ambientes não acadêmicos que todo e qualquer rigor legal contra a prática do tráfico de drogas é justificável, em face da violência inerente a esse crime. Trata-se de uma percepção disseminada. É até arriscado você dizer o contrário, embora óbvio, ou seja, não existe violência na prática do crime em análise. Este será o assunto desta quarta.
Inicialmente, vale dizer que se está fazendo menção ao preceito primário do crime do artigo 33, caput, da Lei nº 11343/2006, cuja redação legal é a seguinte: “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Em apertada síntese, você que me lê deve atentar para os verbos constantes dessa redação legal. Assim, mirando nas palavras redigidas no infinitivo, temos 18 condutas no caput do artigo 33 da Lei de drogas. Provavelmente, está-se falando do tipo penal mais longo do ordenamento jurídico brasileiro, pois 18 práticas são criminalizadas nesse ato normativo.
Falando dessas condutas (importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer), dentro do contexto da lei de drogas, qual delas pode ser considerada como violenta? A resposta é simples e objetiva: NENHUMA!
Essas condutas são praticadas sem que o agente criminoso se valha de violência física ou grave ameaça à pessoa. Aliás, muitas dessas condutas são praticadas entre traficantes ou mercadores de drogas, sendo que não há coação moral ou física entre os envolvidos nessa relação de traficância.
“Como deixa claro o caput do art. 33 da Lei de Drogas, a traficância pode ocorrer ainda que gratuitamente, mas desde que a conduta seja praticada sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (elementos normativos do tipo). Como se sabe, o tráfico de drogas é crime de ação múltipla, e não exige a prática de atos de mercancia para a sua configuração, bastando a realização de alguma das condutas previstas no tipo penal. Com efeito, a conduta de vender materializa apenas uma das dezoito figuras típicas”[i].
O ato de oferecer uma determinada droga[ii] para alguém, ainda que essa pessoa recuse a oferta, por si só já configura o crime do artigo 33 da lei de drogas. Veja que não há qualquer violência nisso, pois se alguém é obrigado aceitar determinada droga, certamente não se estará mais diante do crime do artigo 33 da lei 11343/2006.
O raciocínio que se deve empreender é o seguinte: o delito será violento se a sua forma de execução envolve a prática de violência (física ou moral) contra alguém (uma pessoa), pouco importando o bem jurídico, supostamente, protegido pela norma penal. É que existem crimes violentos associados aos mais variados bens jurídicos. Ilustrando: i) crimes contra a vida (homicídio); ii) crimes contra a saúde (lesão corporal); iii) crimes contra a honra (injúria real); iv) crimes contra o patrimônio (roubo); v) crimes contra a liberdade sexual (estupro), dentre outros.
Ao adotar a política proibicionista em relação às drogas, o Estado brasileiro colocou na clandestinidade as relações comerciais ou cotidianas que digam respeito às substâncias proibidas. Logo, mesmo que não se tenha fim lucrativo algum, oferecer qualquer droga para alguém caracteriza o crime de tráfico. Não há também em relação aos demais verbos do artigo 33 da lei de drogas, qualquer menção ao emprego de violência contra alguém, por exemplo, para fins de importação de determinada substância proibida. Todo o oposto. O que realmente ocorre é o emprego de táticas sub-reptícias, como a utilização de submarinos[iii].
Assim, no caso do tráfico de drogas, tem ainda que o bem jurídico associado aos delitos mencionados na Lei 11343/2006 é o da saúde coletiva. Isto é, em termos diretos, a prática do tráfico de drogas não busca proteger a saúde individual de uma pessoa determinada, mas sim um valor ou interesse ou bem imaterial, pertencente a uma entidade vaga, no caso, à sociedade.
Tal opção normativa é amplamente criticável pela melhor doutrina, dado que “o recurso a um bem jurídico de caráter coletivo para a criminalização de condutas associadas às drogas acaba por mascarar o problema central da decisão pela intervenção penal nessas hipóteses: a ausência de um bem jurídico que a legitime”[iv].
Se pegarmos o recorte histórico da lei 11343/2006, considerando o absurdo número de pessoas já presas pela prática do tráfico de drogas de 2006 até os dias atuais (2024), pode-se afirmar, com segurança e honestidade intelectual, que algum avanço foi obtido em termos de proteção à saúde coletiva?
Demais disso, peço a atenção de você que me lê neste espaço para o seguinte ponto: não confunda a prática do tráfico de drogas (art. 33 da lei 11343) com a guerra causada pela política proibicionista. São coisas absolutamente distintas e que, comumente, são associadas pela mídia comercial tradicional, a fim de que estereótipos sejam reforçados e que toda essa beligerância inútil e cara seja mantida em relação à temática das drogas.
Mas isso será objeto de outro texto. . Até a próxima semana.
[i] Fonte: MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Lei de Drogas: Aspectos Penais e Processuais. [Digite o Local da Editora]: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559645602. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559645602/. Acesso em: 02 abr. 2024. Link da página do e-book: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559645602/epubcfi/6/24%5B%3Bvnd.vst.idref%3Dhtml12%5D!/4/318/36
[ii] Sendo um tipo penal classificado como norma penal em branco, deve-se recorrer à Portaria nº 344 do Ministério da Saúde, para saber-se quais substâncias são definidas como ilícitas, ou seja, aquelas que não podem ser comercializadas, oferecidas, doadas, portadas para consumo próprio, etc. Vale conferir esse rol em: https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/(31)PRT_SVS_344_1998_COMP.pdf/0075d46b-4214-4363-a190-0ac168c140a0
[iii] Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/04/25/o-submarino-de-cocaina-que-expoe-o-problema-europeu-com-a-droga.ghtml
[iv] Carvalho, Érika Mendes de; Ávila, Gustavo Noronha de. Falsos bens jurídicos e a política criminal de drogas: uma aproximação crítica. In: Carvalho, Érika Mendes de; Ávila, Gustavo Noronha de (Orgs.). 10 anos da lei de drogas. Belo Horizonte: editora D´plácido, 2016, p. 647.