segunda-feira, 14 de outubro de 2024

GRANDE SERTÃO: VEREDAS [ou: é preciso (des)respeitar os clássicos]

Publicado em 28 de março de 2024, às 11:29
Fonte: Marcos Fábio Belo Matos – jornalista, professor e escritor. Membro das Academias Bacabalense e Imperatrizense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Imperatriz (IHGI)
Imagem: Internet

Passei uns dez anos para ter a coragem de encarar um dos maiores clássicos da literatura brasileira. Falo de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Cheguei a ensaiar, ali por 2015, uma leitura, mas desisti. Achei que não era a hora – tive preguiça, tive medo, tive uma sensação de que aquela obra gigante me venceu naquela hora…

Já tinha tido contato com a obra do Rosa antes, quando morava no Rio de Janeiro, ainda um famélico estudante de mestrado em Comunicação da UFRJ que ia, todos os finais de semana, à feira de antiguidades da Praça XV garimpar obras em sebos. Pois bem. Um dia, estou eu ali, catando no chão obras clássicas da literatura, quando vejo dois exemplares já amarelecidos, sem capa. Peguei um deles, o mais fino, e perguntei ao vendedor quanto era. Ainda me lembro de ele dizendo: “Esse aí é dois reais”. Virei a página e percebi que era uma edição antiga de “Sagarana”, livro de contos de Guimarães Rosa. “E este outro?”, perguntei a respeito do mais grosso, e ele: “Esse aí tu leva de graça”. “Esse aí” era “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, numa edição dos anos 1940. Comprar livros em sebos tem essas emoções…

Levei os livros para a república onde morava, em Niterói. E eles me acompanharam durante muitos anos, até o dia em que os presenteei a amigos. Não lembro quem ficou com o “Sagarana”, mas “Os Sertões” ficou com o meu grande amigo José Neres, pois sabia eu que aquela obra monumental seria tratada a pão de ló, na biblioteca de um dos maiores estudiosos da literatura no/do Maranhão…

Foi ainda no Rio, então, que li o Rosa, precisamente o conto “O burrinho pedrês”, que está em “Sagarana”. Já me chamou a atenção o apuro e a invencionice da linguagem. Rosa é um arquiteto da linguagem, sem que isso tenha nenhum artifício retórico. Quem já leu me entende…

A segunda leitura que fiz dele foi meses atrás, antes de encarar o “Grande Sertão”. Conto. Outro grande amigo, Rickley Marques, ex-diretor do Campus de Pinheiro da UFMA, já vinha me falando, sempre que o assunto aparecia: “Marcos, você tem que ler ‘A terceira margem do rio’, do Rosa. É o conto mais perfeito de toda a literatura brasileira”. Aquilo me aguçou, pois conto é o que eu mais gosto de ler e escrever. Fui a ele. É realmente um primor de obra, aquilo de o cara ficar vivendo numa canoa, os silêncios que abrem avenidas de sentidos, as pessoas meio embrutecidas, o cenário…

E assim cheguei ao “Grande Sertão: Veredas”. Comprei o livro no fim de dezembro de 2019. E fui. Rickley estava certo na advertência que me fez, quando lhe disse que tinha comprado aquela obra: “É o seguinte: se você conseguir passar da página 100, você chega ao final. Depois da página 100, tudo fica uma delícia”…

Mas é difícil chegar até a página 100, já aviso. Porque é uma construção narrativa que foge aos nossos cânones – mesmo a quem, como eu, que já tem um grande percurso de contato com narradores os mais díspares. A linguagem, muito estranha para o comum de nós, é um empecilho. É de uma beleza autêntica, mas que confunde. Os sentidos de frases e termos não nos soam claros. Um exemplo? “A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado”. E assim é, nas 400 e poucas páginas daquela obra. Mas com o tempo você vai se acostumando, vai se irmanando àquele jeito de dizer as coisas do jagunço Riobaldo, vai passando a acompanhar seus volteios verbais, de raciocínio e de memória. Vai se familiarizando com a aridez da paisagem e da palavra…

Não vou falar do enredo. É preciso ler para ver, para crer, para conceber. Mas vou falar que o livro não tem capítulos. É uma longa conversa entre Riobaldo e o próprio Guimarães, algumas vezes invocado no livro, mas nunca nominado. É quase um fluxo de consciência. Quase uma conversa psicanalítica. Quase um monólogo. Quase um compêndio existencialista. Quase uma odisseia sertaneja pelos gerais. Quase uma obra homoafetiva. Quase um bangue-bangue. O livro é quase tantas coisas…

Com “Grande Sertão: Veredas” eu aprendi uma grande lição. É preciso (des)respeitar os clássicos. É preciso entrar neles como se entra num quarto escuro da casa da nossa avó: com medo do inesperado, mas com a confiança do aconchego e a certeza de que ali se guardam muitos bons segredos. Os clássicos estão aí para nos ensinarem que sempre há uma lindeza no mundo pra gente conhecer…

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