quarta-feira, 23 de abril de 2025

O PODER DA MAGIA: SONHO, FANTASIA E ARTE

Publicado em 28 de março de 2024, às 11:39
Fonte: Nertan Dias Silva Maia Professor da UFMA Doutor em Filosofia [email protected]
Imagem: Alma infantil. Desenho a Nanquim s/ papel casca de ovo. 21x29cm, 2024. @nertansilvamaia

Como bem observa Anton Ehrenzweig, em sua obra Psicanálise da percepção artística (1977), ocorre na percepção profunda uma espécie de visão superposta incompatível com a percepção de superfície, uma vez que o senso de realidade, embora possa estar presente em variados aspectos, não se pronuncia inteligivelmente no terreno onírico – bem como nos terrenos da fantasia e da arte – onde a mente considera aceitável toda e qualquer possibilidade de relação entre imagens, ideias e objetos, desde as mais concatenadas às mais absurdas.

Nesse âmbito, as imagens oníricas (e também as fantasiosas e artísticas) são produzidas por um diverso e expressivo ganho de significados que não se relacionam de uma forma simplista com o mundo real. Pelo contrário, provocam um estranhamento, uma inquietação psíquica em quem as produz, no que diz respeito aos seus sentidos. Embora possa haver certa relação entre as imagens de um sonho com a realidade, no sonho, assim como na fantasia e na arte, tais imagens são sempre simbólicas.

Essa relação entre o sonho, a fantasia, a arte e a realidade bem traduz a relação entre o inconsciente e o consciente. Para esclarecer um pouco essa afirmação partamos da seguinte argumentação: na mente profunda de um adulto jaz, em seu domínio inconsciente, uma mente infantil “adormecida” dotada de todas as imagens, memórias, paixões, desejos etc. produzidos em sua tenra idade. Somente nos reconectando com essa nossa mente infantil é que podemos encontrar significados mais coerentes para as imprecisões e ambiguidades das visões oníricas, fantasiosas ou artísticas, já que nosso inconsciente é bastante simpático aos sentimentos infantis, precisamente por ser o “lugar” mental onde estes estão guardados.

Seguindo nossa argumentação, sabe-se que a criança não faz tantas diferenciações entre as coisas do mundo quanto os adultos, pois, por ainda não se portar pelo regramento moral (que é uma construção cultural), seu ego, enquanto construção biopsicológica, é a única “coisa” que precede o mundo, de modo que de nada importa a realidade que a circunda além de si própria, tendo em vista ainda não ter aprendido a diferenciar seu ego do mundo externo. Para a criança na primeira infância, sua mera natureza se sobrepõe a todo o conjunto moral de sua sociedade, a qual ainda não é reconhecida por ela como sua. Desse modo, todas as coisas que compõem seu mundo, tais como seus pais, seus brinquedos, sua casa etc., são para ela extensões de seu próprio corpo enquanto natureza percebida (observando-se que a criança pequena sequer diferencia ego e corpo). A criança, portanto, não é capaz de sentir ou vivenciar plenamente a ambiguidade das coisas, já que sua constituição mental ainda não está preparada para centrar-se nas diferenciações mais sutis da vida. Isso se dá apenas com seu desenvolvimento cognitivo, que dependerá de um moroso processo de formação biopsicossocial. Enquanto isso não ocorre, a criança compõe seu mundo mediante generalizações que se dão dentro de uma escala de experiências sensitivas, cujas representações primárias têm como referências, por exemplo, figuras femininas como equivalente a mãe ou figuras masculinas, ao pai, não importando, efetivamente, se se trata de sua mãe ou de seu pai verdadeiros. Esse exemplo mostra o quanto a criança não é guiada pela ambiguidade quando de suas primeiras apreensões da realidade, exatamente porque desconhece o fator diferenciação.

Dito isto, presume-se que as relações que se estabelecem entre o sonho, as fantasias, as expressões artísticas e a realidade só podem ser compreendidas substancialmente mediante o reencontro com nossa mente infantil. Isso se dá no âmbito de outra relação ainda mais profunda: aquela que ocorre à revelia de nossa consciência por processos regressivos, e que tem o potencial de estabelecer nexos significativos com a realidade mediante metáforas projetadas por nossa percepção profunda, cujos meios de comunicação mais expressivos são a associação livre, os sonhos, as fantasias e as criações artísticas.

Entra aí outro dado importante que devemos considerar: o poder da magia. Como afirma Ernst Fischer, no livro A necessidade da arte (1959), desde os primórdios da humanidade, o homem, como ser genérico, intuiu que os objetos feitos ou não por ele podiam ser convertidos em instrumentos mágicos capazes de causar influências positivas ou negativas sobre as coisas do mundo e sobre suas representações espirituais.

Desta maneira, estes instrumentos mágicos puderam se associar aos rituais sagrados, os quais requereram, por sua vez, a participação dos sonhos, das fantasias e das expressões artísticas para servir de meios de manifestação da magia. Isso fez com que a mágica envolvida nesse complexo fenômeno mítico-estético-cultural, inevitavelmente, conduzisse a percepção profunda do homem ao infinito, à imortalidade, cujo destino último é a divindade, como representação de tudo o que é inalcançável e poderoso e que exerce um controle sobre a existência, seja pelo amor, seja pelo temor. 

No fluxo dessa construção mental de um sentido para a existência, o sonho, a fantasia e a arte (lembrando que o conceito de arte sequer existia nos primórdios da humanidade, pois as expressões artísticas pertenciam ao mundo espiritual e estavam ao acesso de toda a comunidade) tornaram-se instrumentos por excelência do poder da magia, servindo ao homem como vias de dominação, admiração e explicação da natureza. Na base desse constructo, além dos elementos mítico-estéticos, está o conjunto das relações socioculturais que formam os grupamentos humanos, as quais abarcam as práticas sexuais, o nascimento e a morte, a individualização dos entes, as crenças, os gestos, o trabalho e todas as demais atividades realizadas em prol de uma comunidade.

Nesse conjunto, a arte, de forma específica e em seu conceito amplo, não era um produto individual, e sim coletivo, pois fazia parte das práticas sociais e culturais gerais, embora coubesse ao feiticeiro o saber supremo de aplicação da magia artística sobre a realidade. Do mesmo modo, os sonhos e as fantasias também sempre estiveram relacionados aos ritos e mitos em todas as culturas humanas desde priscas eras. Sabe-se que as sociedades primitivas sempre tiveram um senso de coletividade muito aguçado, sendo esta, uma das características que propiciaram o vínculo dos sonhos, das fantasias e das manifestações artísticas com o poder da magia, tão bem captado e traduzido por nossa percepção de profundidade e por nossa mente infantil.

Referências:

EHRENZWEIG, Anton. Psicanálise da percepção artística: uma introdução à teoria da percepção inconsciente. Tradução de Irley Franco. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 5. ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976 [1959].

Uma resposta

  1. O artigo de meu irmão Nertan Silva, O Poder da Magia: Sonho, Fantasia e Arte, nos deixa esclarecidos das profundas implicações metafísicas, ontológicas e psicanalíticas da Arte e de como surge ela na mente humana.
    O advento da Arte é provavelmente bem anterior, em milhares de anos, ao advento da Filosofia, enquanto perquirição racional do Mundo e de suas fundamentações ontológicas, mas surge já com a mesma vocação da atividade filosófica, qual seja, conforme já se disse, a busca racional de uma teleologia para a Existência.
    O autor enfatiza as profundas relações entre Arte e Mente, situando no mais orofundo recôndito da Mente Infantil o cerne de todas as grandes e poderosas pulsões que habitam a Alma Humana.
    Eis por que Sigmund Freud, fundador da Psicanálise, dava tanta relevância ao Inconsciente Infantil e à sua influência na vida adulta.
    Nertan nos chama ainda a atenção para as profundas conexões ontológicas entre Arte, Sonho e Magia e, acrescento eu, Mitologia.
    O articulista está de parabéns por abordar, de firma tão concisa e completa, tema filosófico tão complexo.

    Nemésio Silva Filho é professor, jornalista e psicanalista em Fortaleza.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicidade

Sites relevantes para pesquisa

Nós, do site Região Tocantina, queremos desejar, a todos os nossos leitoras e nossas leitoras, um FELIZ NATAL, repleto de fé, alegria, paz, saúde e felicidade.

E que as comemorações possam realçar nossos melhores e duradouros sentimentos.

FELIZ NATAL!

Publicidade