Conforme divulgado pelo portal New York Times, o ex-presidente Jair teria passado duas noites na embaixada da Hungria, apenas quatro dias após ter seu passaporte apreendido, em cumprimento a determinação judicial[i]. O passaporte do ex-presidente foi apreendido no dia 12/2/2024[ii], enquanto que sua hospedagem na referida embaixada ocorreu no dia 12/2/2024. Esses fatos vieram ao conhecimento público somente agora (25/3/2024). Com isso, uma pergunta insiste em não calar: seria possível decretar-se a prisão preventiva de Jair com fulcro na garantia da aplicação da lei penal?
Diante da abrangência da temática (Medidas Cautelares no processo penal), o texto de hoje fará uma sucinta abordagem sobre assunto tão recorrente e intrigante para a comunidade jurídica e para o público em geral.
Medidas cautelares são provimentos jurisdicionais de urgência não punitivos (isto é, não possuem natureza penal) que se voltam à garantia de pessoas, coisas, da investigação, do processo e até mesmo da eventual aplicação da lei penal (no caso de condenação definitiva). Esses provimentos exigem decisão judicial fundamentada, dado que, com maior ou menor intensidade, restringem ou privam o investigado/acusado do exercício de direitos fundamentais (Dezem, 2020, p. 847-849).
No âmbito processual penal, as medidas cautelares podem ser reais, probatórias e pessoais. “Previstas no Código de Processo Penal, as medidas cautelares podem ser classificadas em reais, quando visam garantir satisfação de um direito sobre a coisa (do Estado ou do ofendido), em probatórias, quando objetivam obter uma prova no processo penal e pessoais, quando recaem sobre o indiciado ou acusado, como forma de garantir sua participação no processo” (Louzada, 2014, p. 4).
As medidas cautelares de natureza pessoal podem ser prisionais ou não. Explica-se. As medidas cautelares não prisionais são aquelas que buscam garantir a investigação ou o processo, sem que a mais extrema das práticas seja adotada, qual seja, a que impõe a prisão de alguém não reconhecida, definitivamente, como responsável pela prática de crime pelo Sistema de Justiça.
Prender alguém, investigado ou acusado, antes do trânsito em julgado da condenação é uma medida extremada, excepcional e que deve ser adotada com reservas e cuidados em qualquer país minimamente sério e materialmente democrático. Lamentavelmente, dados estatísticos recentes dão conta que a população carcerária brasileira possui, segundo levantamento do 15º ciclo SISDEPEN – Período de referência: Julho a Dezembro de 2023, 175.279 (cento e setenta e cinco mil, duzentos e setenta e nove) presos provisórios[iii].
As medidas cautelares diversas da prisão ou pessoais não prisionais, portanto, são alternativas ao cárcere, dado que possibilitam o investigado ou o acusado de seguir em liberdade durante a investigação ou o processo, conforme o caso, mesmo que sujeito a restrições.
Nos termos do artigo 319 e 320 do Código de Processo Penal, essas são as medidas cautelares diversas da prisão a disposição do Sistema Penal: “I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX – monitoração eletrônica”, além da proibição de saída do país.
No caso em análise, consta que sob Jair recai a cautelar que lhe proíbe de ausentar-se da comarca, especialmente, do país, razão pela qual fora apreendido o seu passaporte. Trata-se de uma medida cautelar pessoal de natureza não privativa da liberdade. Entretanto, o misterioso fato de Jair ter passado duas noites na embaixada da Hungria, há mais de 30 dias, por si só, seria suficiente para decretar sua prisão preventiva?
Entendo que não. Mas também não consideraria essa eventual prisão preventiva uma aberração jurídica. É que a prisão preventiva, enquanto medida cautela pessoal extrema, está condicionada ao preenchimento de hipóteses legais e pressupostos jurídicos de cabimento mais rigorosos.
A prisão preventiva só pode ser cogitada se, comprovadamente, o caso conter dois elementos essenciais: justa causa (fumus commissi delicti) e risco concreto causado pela manutenção do investigado ou acusado em liberdade (periculum libertatis).
Haverá o elemento da justa causa, quando o Sistema penal estiver municiado de prova da existência do delito e de indícios bastantes de autoria ou de participação do investigado/acusado na prática criminosa. Não servem meras ilações. Trabalhamos com fatos.
Mas como se dará a demonstração de que a liberdade do investigado/acusado coloca em risco a investigação, o processo, a segurança de testemunhas, vítimas, a manutenção de possíveis fontes de prova, etc? Quando restar demonstrado que a liberdade do indivíduo é atentatória à ordem pública, à ordem econômica, à conveniência da instrução criminal e à provável aplicação da lei penal (no caso de condenação pela prática do crime).
Ora, para decretar a prisão preventiva, como se percebe, qualquer juízo sobre o mérito da causa penal se mostra inadequado, impertinente, irracional e até mesmo inconstitucional. A análise deve recair sobre necessidade processual ou cautelar da prisão preventiva para assegurar os valores acima expostos.
Especificamente sobre a situação de Jair, certamente, ele se aproxima do pressuposto que fundamenta a prisão preventiva como recurso extremo e último garantidor da aplicação da lei penal. É que, diante da demonstração concreta do risco de fuga do investigado/processado, a sua prisão preventiva se mostra necessária e embasada. Inclusive, esse foi o argumento utilizado para prender, provisoriamente, o ex-jogador Daniel Alves, então condenado pela prática de crime de estupro na Espanha.
Voltando à hipótese de Jair, não nego conhecer o entendimento adotado na Ação Penal 1044, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgada pelo STF em 31.08.2021. Apenas considero que, diante dos fatos narrados acima (ida à e permanência de dois dias de Jair na embaixada da Hungria), o mais correto seria, ao invés de decretar a extremada medida cautelar da prisão preventiva, impor mais uma medida cautelar diversa da prisão ao investigado. Com isso, o investigado preservaria a sua liberdade, mas a exerceria com mais restrições, dado que duas medidas cautelares lhe seriam impostas. Por exemplo: além da manutenção da retenção, o uso de tornozeleira eletrônica.
Com essa cumulação de medidas cautelares diversas da prisão, o Sistema Penal poderia, de fato, fiscalizar com mais precisão os passos do investigado. Afinal, a notícia de sua ida à embaixada da Hungria só se tornou conhecida por causa de reportagem de jornal estadunidense.
Por fim, quem acompanha esta coluna, semanalmente, sabe que o objetivo aqui é traçar uma abordagem teórica sobre situações hipotéticas, mesmo que inspiradas em casos reais. Não conheço os autos do Inquérito em questão. Em face disso, espero que sigamos estudando e debatendo junto(a)s as múltiplas controvérsias criminais, sempre presentes em nossa rotina acadêmica, política, profissional ou social.
Até a próxima semana.
Bibliografia
Dezem, G. M. (2020). Curso de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais.
Louzada, B. A. (2014). Medidas cautelares de natureza pessoal diversas da prisão no CPP. Fonte: Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro: https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/1semestre2014/trabalhos_12014/BrunoLouzada.pdf
[i] Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/03/25/jair-bolsonaro-embaixada-hungria.htm
[ii] Fonte: https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2024/02/08/passaporte-jair-bolsonaro.ghtml
[iii] Fonte: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-2-semestre-de-2023.pdf
Uma resposta
Sempre prezando pela aplicação fiel da lei enquanto resposta penal adequada ao caso, não à pessoa. Excelente explicação!