No longo período em que estive em sala de aula dos cursos de Letras ou em pós-graduações voltadas para os estudos literários, sempre defendi a tese de que quem se propõe a estudar Literatura deve se despir de todos os preconceitos. Lembro-me de uma ex-aluna que um dia disse que não poderia defender um trabalho de literatura latina, pois o pastor de sua igreja havia dito que o livro que ela escolhera era por demais pecaminoso. Total absurdo! No final, depois de uma longa conversa, ela decidiu fazer a atividade, mesmo sem o conhecimento de seu pastor.
Em outro momento, presenciei uma professora dizendo que alguns livros de Gregório de Matos, Carlos Drummond de Andrade, Hilda Hilst, Bocage, Manuel Bandeira, Glauco Mattoso e Charles Bukowski deveriam ser incinerados em um local público, para servir como exemplo para essas pessoas que só pensam em pecados carnais. Aqui estou sendo bastante eufemístico, pois o vocabulário daquela senhora tão pura, ao discutir o assunto, faria até mesmo Pietro Aretino ficar corado.
Comento isso para lembrar o quão difícil é tratar de temáticas que envolvam erotismo, sensualidade ou mesmo pornografia nos quase sempre sacralizados terrenos da literatura. Mesmo quem consome esses produtos às escondidas costuma negar tais relações e julgar negativamente quem interaja com esse discriminado viés das obras literárias.
Mas é preciso lembrar que deve haver espaço para todos os tipos e modalidades de arte, para toda e qualquer temática, sem preconceitos. E quem não gostar do assunto pode nunca mais retomar a ele e levar uma vida tranquila e sem incômodos artísticos-literários.
O experiente professor e poeta Neurivan Sousa, em seu mais recente livro – Flor de Malagueta (Patuá Editora, 2023, 64 páginas) – resolveu transitar pelos terrenos da sensualidade e do erotismo em versos cuidadosamente elaborados. Ao longo das páginas do livro, o leitor mergulha nas entranhas das palavras e compartilha com o eu lírico momentos de imersão em uma geometria amorosa que vai muito além da pele e da carne.
Logo no primeiro poema do livro, temos um contato com o intertexto bíblico no qual a pedra cede lugar à pele/pétala e a igreja perde lugar para o poema. Vaticina o poeta:
tu és pétala
e sobre a tua pele
escreverei o meu poema. (pág. 15)
E essa decisão é levada a sério até o final. As metáforas afloram a cada página do livro e conduzem o leitor em um emaranhado de sinestesias, alusões, metonímias, eufemismo e elipses que acabam traçando um sutil paralelo entre o título do livro e o conteúdo de cada um dos poemas. O poeta poderia optar por qualquer outro tipo de pimenta para nominar o livro. Poderia também eliminar a referência à flor dessa pimenta. Porém, ao deixar no título o conjunto (Flor de malagueta), acaba deixando claro também um cuidado em relacionar a essência e a aparência.
Em termos culinários, a pimenta malagueta está situada na parte intermediária da escala de Scoville, que mede o grau de ardência/picância das pimentas, sendo rica também em algumas vitaminas, principalmente A e C. Sua flor, além de outras propriedades, é utilizada como substância vasodilatadora e afrodisíaca. Dessa forma, Neurivan Sousa, desde o título deste seu livro, já começa a descortinar a voragem com que seu eu lírico despe (com os olhos e com todos os demais sentidos) a musa que não se esconde, que não se cobre, mas que também reluta em se mostrar por inteiro.
Essa musa praticamente não tem fala e seus gestos são descritos e filtrados por um eu lírico adepto do voyerismo, mas que não se contenta em vê-la, precisa também tocá-la e senti-la, afinal de contas:
despi-la simplesmente
já é um alumbramento
sua beleza é tamanha
que até me constrange
devorá-la ou devolvê-la (pág. 29)
[e]
tua pele
é asfalto quente
em que queimo
joelhos e lábios. (pág. 51)
O livro está recheado de momentos em que a fusão dos corpos em êxtase é descrita ou até mesmo reescrita. Porém, assim como ocorre no poema Rosário, de Vinícius de Morais, o leitor precisa perceber que a intenção do poeta não é descambar para um erotismo piegas, mas sim valorizar as ações a partir de um trabalho com as palavras e com as imagens que são formadas a partir do encontro dos versos e estrofes com as experiências particulares de cada leitor.
Em Flor de Malagueta, os poemas são curtos e raramente chegam a ocupar uma página inteira, alguns deles são sintetizados em poucos versos, porém é preciso atenção para a profundidade das artérias verbais que irradiam metáforas em cada passagem. É um livro no qual o amor carnal ocupa seu devido espaço, mas que, mesmo na avidez da entrega física, ainda sobra terreno para uma troca de olhares, de sussurros e de cálidos gemidos… Tudo misturado com a ardência proporcionada pelas doses equilibradas de alguns acepipes temperados e enfeitados com a malagueta e suas nada inocentes flores.
É importante jogar os preconceitos fora e aproveitar com calma cada um dos poemas. Talvez o leitor possa se encontrar na esquina de alguns desses versos… Quem sabe?
4 respostas
Ótima observação Professor!
Parabéns para os 2 Professores:
Neres e Neurivan!
Eu sou amante da poesia erótica romântica, onde predomina o belo e a energia genuína da criação divina.
Amei ler José Neres, ele dá ênfase a uma sensualidade saudável e sem falsa moral.
” Tua pele é asfalto quente em que queimo joelhos e lábios”.
Quanta poesia e amor existe nestes versos!
Parabéns José Neres, seu livro deve ser genial!
Um brinde a Flor de Malagueta! Sucesso!
Meu estimado José Neres, que belíssimo texto! Posso dizer que sou um privilegiado em ganhar da sua parte essa maravilhosa resenha. Fico muito feliz por contar com a sua leitura crítica.
Tenho poucos leitores, mas tê-lo entre eles deixa-me imensamente honrado.
Muito obrigado, meu querido! Um grande abraço de gratidão e afeto.
Professor José Neres, sua crítica literária sobre o livro de Neurivan “Flor de Malagueta”, foi excelente! Analisou cada poema de forma profunda e com sensibilidade de um grande literário.
Gratidão!