sexta-feira, 23 de maio de 2025

FOI GOLPE (?)

Publicado em 14 de fevereiro de 2024, às 9:34
Fonte: Paulo Thiago Fernandes Dias – Advogado. Professor universitário (CEUMA e UEMASUL).
Divulgação - Imagem publicada pela EBC no dia 09/02/2024.

Na linha das investigações deflagradas a partir do chamado “inquérito das milícias digitais”, a Polícia Federal levou a efeito uma operação contra militares da reserva, ex-assessores da presidência da República (2019-2022), o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, dentre outros, a fim de que se venha a coletar indícios e elementos de informação sobre a eventual participação dos referidos na prática do crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, com previsão legal no artigo 359-L do Código Penal (CP)[i].

Para o alcance dessas informações, o Supremo Tribunal Federal, após provocação, expediu mandados de busca e apreensão e de prisão preventiva em face de alguns dos investigados[ii]. Ao todo, quatro pessoas foram presas preventivamente[iii], sendo que o presidente do Partido Liberal foi preso em flagrante diante da posse ilegal de arma de fogo e de uma pepita de ouro, conforme veiculado pela mídia comercial[iv].

Em que pese não tenha sido preso preventivamente, nem sofrido busca e apreensão em sua residência, o ex-presidente Jair B. teve seu passaporte apreendido pelos agentes da Polícia Federal, de acordo com ordem expedida pelo Judiciário[v]. Além disso, foi retirado o sigilo do vídeo em que uma reunião ministerial ocorrida no dia 05 de julho de 2022 teria, supostamente, servido para ordenar os funcionários do primeiro e do segundo escalões do então governo federal, no sentido de que seguissem levantando inverdades e teorias da conspiração contra as urnas eletrônicas, bem como disseminando notícias falsas sobre uma eventual ausência de lisura do processo eleitoral[vi].

Aludida reunião está sendo considerada com um de muitos outros atos coordenados e planejados pelos investigados, com vistas ao derradeiro e abjeto episódio do dia 08/01/2023, quando criminosos depredaram o patrimônio público, com destaque para as sedes dos Três Poderes em Brasília.

Perceba que este colunista adota um tom hipotético aos fatos aqui mencionados. É que se trabalha, politica e juridicamente, com a cautela que a observância à presunção de inocência exige de todo estudioso, acadêmico e profissional sério do Direito. É que, por se tratar o inquérito policial de um procedimento informativo presidido, unilateralmente, pela Polícia Judiciária e em fase pré-processual, em regra, essa peça de informação serve à coleta de informações para o municiamento de eventual denúncia a ser proposta pelo Ministério Público. Não se tem, tecnicamente, por provado um fato somente a partir das informações coletadas em sede de inquérito policial, posto que a palavra prova “[…] só pode ser usada para se referir aos elementos de convicção produzidos, em regra, no curso do processo judicial, e, por conseguinte, com a necessária participação dialética das partes, sob o manto do contraditório (ainda que diferido) e da ampla defesa”[vii].

Feita essa demarcação, busca-se, neste texto, abordar outras questões. Primeiramente, o que significa golpe de Estado atualmente? Em segundo lugar, o crime do artigo 359-L do CP só pode ser punido no caso de consumação do golpe ou da abolição violenta do Estado Democrático de Direito?

Algumas pessoas próximas dos investigados começaram a divulgar para seu rebanho digital, que um golpe sem o uso de canhão, tanques, armas e violência bruta não pode ser considerado como golpe de Estado[viii]. Apesar de pueris, desatualizadas e de nível intelectual sub-reptício, essas afirmações têm um propósito muito eficiente: estabelecer uma comunicação direta com a legião acrítica de seguidores que tais pessoas possuem nas redes sociais. Com isso, por mais banais que sejam, essas alegações serão maciçamente reproduzidas nas redes sociais e no famoso “boca a boca”.

Ocorre que essa leitura sobre o conceito de golpe de Estado não sobrevive a uma pesquisa simples. Conforme lição de Fabrício Pereira da Silva, mais importante do que saber a identidade de quem está por trás do golpe é conhecer como o golpe é feito, isto é, por intermédio de agentes, instituições normas já existentes no Estado. Os golpistas, portanto, distorcem, desvirtuam, reinterpretam, desmoralizam institutos e instituições que o Estado já possui para, com isso, levar a efeito um golpe que terá aparência, uma máscara de legalidade. Trata-se de um neogolpismo ou de um golpe de tipo novo:

“Assim sendo, o ‘neogolpismo’ pode ser entendido como um tipo de golpe de Estado que preserva certas aparências legais, e se processa preferencialmente por meio das instituições vigentes e do cumprimento de ritos formais. Estas instituições podem sofrer mudanças, no próprio processo ou em sua sequência – dada a zona cinza que se abre a partir da crise institucional, política, social, de legitimidade de todo o sistema, que é aprofundada por aquele processo. Diferentemente dos golpes do século passado (e de alguns do presente), estas formas mais processuais e sutis tornam mais difícil sua identificação e denúncia. No entanto, trata-se efetivamente de golpes porque preservam seu elemento essencial: são quebras, rupturas, nas quais seus agentes centrais integram o aparato estatal”[ix].  

Entretanto, supondo-se que todos os fatos investigados estejam relacionados aos eventos deploráveis do chamado 08 de janeiro, toda essa discussão acerca do conceito de golpe de Estado já se mostraria inútil, diante da figura penal do crime de Abolição violenta do Estado democrático de Direito.

Destaca-se que o crime previsto no artigo 359-L do CP foi criado após a revogação da Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7170/1983), escombro autoritário e resquício da ditadura civil-militar (1964-1985), repleta de tipos penais abertos e inequivocamente incompatíveis com a Constituição da República (1988).

Assim, nos termos do artigo 359-L do CP, estará sujeita a uma pena de reclusão de 4 a 8 anos, além daquela concernente à prática da violência, a pessoa que: “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais[x].

O que se tem nesse tipo penal é a punição a quem tenta, por meio de violência ou grave ameaça, assolar o Estado Democrático de Direito, seja pela criação de impedimento ou de limitações ao exercício dos poderes constitucionais. Veja-se que, em hipótese, os fatos praticados contra as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário se adequam ao tipo legal em comento, especialmente se todo o contexto da época for levado em consideração (acampamento nas imediações de quartéis, manifestações solicitando às Forças Armadas que não permitisse a posse do governo legitimamente eleito, manifestações pedindo a prisão ou mesmo o extermínio de ministros do STF e do Legislativo, bloqueio de estradas, etc).

Tão somente os ataques ao funcionamento regular dos poderes constitucionais, no sentido de buscar impedir ou limitar a sua atuação, ou seja, o exercício de suas atribuições constitucionalmente delineadas, configuram o delito em comento. Com a violência ou grave ameaça, evidencia-se o aspecto positivo da conduta típica[xi].

Logo, toda uma cadeia de comando pode ser responsabilizada pela prática do crime em comento. Afinal, como se pode observar, ainda que no plano das ideias, e de acordo com as informações veiculadas pela mídia, vários atos criminosos foram praticados em conexidade até o grotesco episódio de destruição dos prédios públicos.

Seguindo com essa linha de raciocínio, será facilmente derrubada a tese propalada por alguns inscientes[xii], acerca do até aqui obtido pela Polícia Federal, no sentido de que nenhum ato executório foi praticado pelos investigados, dado que eles não passaram de eventuais preparativos (fatos atípicos), além de que o golpe nunca se consumou. Entretanto, aos que não sabem ou fingem não saber, o crime previsto no artigo 359-L do CP é classificado como delito de atentado, isto é, aquele tipo de infração penal “[…] em que a consumação se equipara à tentativa no que se refere à pena cominada, como na violação do voto com previsão no art. 312 do Código Eleitoral […] ou na evasão mediante violência contra a pessoa com previsão no art. 352 do Código penal […] ou no crime contra a economia popular previsto no art. 2º, IX, da Lei n. 1521/1951 […][xiii].

À guisa de fechamento, o golpe de Estado, felizmente, não se consumou. Trata-se de um fato. Outrossim, também não se pode duvidar da tentativa de golpe e que todos os envolvidos devem ter seus direitos fundamentais respeitados, especialmente aqueles vinculados ao devido processo constitucional e convencional, até que suas respectivas culpas sejam comprovadas em Juízo, com decisão transitada em julgado.

Até a próxima semana.


[i] Fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/02/08/operacao-pf-milicias-digitais.ghtml

[ii] Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/02/pf-mira-ex-ministros-de-bolsonaro-e-militares-em-operacao-sobre-tentativa-de-golpe.shtml

[iii] Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/11/bernardo-romao-correia-neto-militar-que-estava-eua-preso-pf-brasilia.htm

[iv] Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/11/bernardo-romao-correia-neto-militar-que-estava-eua-preso-pf-brasilia.htm

[v] Fonte: https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2024/02/08/passaporte-jair-bolsonaro.ghtml

[vi] Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2024/02/09/stf-tira-sigilo-de-video-de-reuniao-que-pode-implicar-bolsonaro-em-trama-golpista

[vii] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Editora Juspodivm, 2023, p. 160.

[viii] Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/08/live-eduardo-bolsonaro-operacao-pf.htm

[ix] SILVA, Fabrício Pereira da. Definindo os neogolpes. In: Campos neutrais. Revista Latino-americana de relações internacionais. Rio Grande: v. 3, n. 3, p. 55-66, set-dez 2021. Disponível em: file:///C:/Users/DELL/Downloads/cneutrais,+3)+13990+-+Definindo+os+neogolpes+p.+55-66.pdf. Acesso em 13/2/2024.

[x] Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

[xi] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Parte especial. Londrina: Thoth editora, 2023, p. 1234.

[xii] Fonte: https://noticias.uol.com.br/colunas/walter-maierovitch/2024/02/12/codigo-penal-bolsonaro.htm

[xiii] MARTINELLI, João Paulo; BEM, Leonardo Schmitt de. Direito Penal. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2020, p. 509.

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