Um poema se escreve escrevendo, desconheço jeito melhor. Escrevendo é que a escrita nos pega, brincando com a pena nos chega a inspiração. Desde que me escrevo por gente, a poesia me acha assim, sem jeito, desprevenida, brincando de esconder letrinhas num papel azul, marrom, verde, branco, etc.
E essas lê-trinhas podem ser coloridas ou cinza-preto-e-branco, porque os dias são todos desiguais, nunca vivi um dia como o outro, como naquele filme da Marmota, em que um homem fica preso nas mesmas vinte e quatro horas e vive os mesmos acontecimentos trocentas vezes, até descobrir como se livrar do ciclo, ou da prisão do tempo. Algumas coisas ele podia influenciar; já outras, não, pois assim é a vida, até na ficção!
A Morte, por exemplo, é algo que não se pode mudar de jeito e maneira, no dia e horário que estiver marcado a Marvada semprevem, sem falta. Ela não tem piedade de ninguém, nem de planta, nem de gente, nem de bode, pois como disse Suassuna: “Tudo o que é vivo morre.” (1).
Sim, mas eu estava falando de escrita, e não de morte! E sempre é nesse molde: a gente começa num assunto e só a Deusa da Palavra sabe onde se vai parar, e desses fluxos nascem os poemas. Melhor dizendo: também dessa maneira eles vêm à luz do dia, porque tantos outros podem surgir de um mutismo ou de um engasgo, ou de um grito, de um vômito, da incapacidade de processar a loucura da realidade.
Acho que os melhores poemas que escrevi na vida, escrevi em estado de pura descontração com o Universo, sem qualquer expectativa; ou em estado de quase morte, aquele instante em que você nem sabe se ainda respira, num ataque de pânico, quando o único que se consegue ver são palavras fervilhando entre a caneta e o papel em branco ou marrom, caso o papel seja de pão – não na feitura mas na função -, e as palavras vão te curando, curando, como se antídoto fossem contra o veneno da desesperança. E quando o medo passa, ficam apenas os sons e a calma, e a composição nos cobre como se fosse um cobertor de lã, daqueles bem macios.
Fato é que se me pagassem ou pedissem para escrever um poema, essa encomenda não prestaria, porque poeta não é máquina, poeta é um ser que não manda em nada, nem em si próprio, muito menos nas palavras que recebe do Além dos Significados. Poeta simplesmente capta, é um tipo de médium cujo corpo serve à escrita, que quando vem tudo abala, toma os poros e sai por todos os lugares, não espera por nada, explode!
Escrever poemas pode ser também um exercício. De repente, a pessoa começa a brincar com rimas e formas e o poema está aí: concretíssimo!
Outras vezes, como a piada, o poema já vem pronto. Basta que se erga os olhos e se veja ao redor: árvores se abraçando, aves bailando, um rio congelado na fonte, como se fosse de vidro… Então a pessoa observa e anota e depois vem dizer que o poema é dela. Mentira, é da natureza! Poetas, eles e elas, são feitos de barros, como o Manoel, aquele que passou a vida moldando versos incrivelmente simples de tão elaborados ou, quem sabe, observando e anotando em cadernos, ou mesmo no chão, nas abas de cada dia.
Digo que sou letripulista porque poesia, para mim, mesmo quando trata de temas difíceis, nunca é algo sisudo, formal, autoritário, nariz empinado, nem mesmo quando dói, porque há poemas que doem de verdade, e como! Poesia é uma estripulia com a vida, uma forma de resistir e persistir, um analgésico para o espírito.
Sobretudo, poemas nos ajudam a supoetar o mundo! Por vezes os versos chegam quietos, curando feridas e enxugando lágrimas; outras ainda, traduzem, silenciosos, as tantas lamentações. Daí de eu dizer que poesia surge sem fórmulas, no seu tempo, e só se manifesta quando quer e tem algo a dizer, como nesses versos, que ela me deu de escrever:
Das coisas que se danam
danou-se um acabar dentro,
voltei-me a fazer poesia,
como se faz do barro figuras sem vida,
e sem rosto;
sem pernas e braços,
sigo montando.
faz-me bem brincar de
desonhadora,
catar pedras na beira
do abismo
é uma forma de costurar o roto.
Fonte da citação:
- Frase de um personagem na peça O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.