terça-feira, 18 de março de 2025

NÃO É NÃO!

Publicado em 7 de fevereiro de 2024, às 9:01
Fonte: Paulo Thiago Fernandes Dias – Advogado. Professor universitário (CEUMA e UEMASUL).
Imagem da internet

À medida que o período de carnaval vai se aproximando, a campanha contra a importunação e a favor da liberdade sexual se intensifica nas redes sociais e demais veículos de imprensa. Diante da repercussão causada por casos como o do ex-jogador Daniel Alves (preso e sob julgamento perante a justiça espanhola por suposta prática de estupro em uma casa noturna), o Estado brasileiro criou e sancionou a Lei nº 14786/2023, responsável pela criação do protocolo “Não é Não”, com vistas à prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e para proteção à vítima, instituindo também o selo “Não é Não – Mulheres Seguras”, alterando ainda Lei Geral do Esporte[ii].

Lamentavelmente, atendendo ao lobby de grupos políticos representados no Parlamento, igrejas e locais destinados à prática de cultos religiosos não foram contemplados pela Lei nº 14786/2023, como se em tais espaços o assunto liberdade sexual (notadamente das mulheres) fosse indigno de respeito[iii].

Se já há certo avanço normativo no que diz respeito às violações à liberdade sexual de mulheres praticadas em nos ambientes fechados contemplados pela Lei nº 14786/2023, o que se pode fazer quando o fato ocorre ao ar livre, por exemplo, durante o trajeto de um bloquinho de carnaval? A famosa sentença “assédio é crime” é adequada para, por exemplo, o sujeito que tenta beijar furtivamente uma mulher na rua ou para o caso do sujeito que, aproveitando-se da superlotação de um ônibus, esfrega seu corpo no da vítima?

Ainda que tenha sido popularizada essa concepção, é importante diferenciarmos os crimes de assédio sexual e de importunação sexual.

Previsto no artigo 216-A do Código Penal, o assédio sexual se caracteriza por “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”, prevendo uma pena de detenção de um a dois anos.

Em respeito ao princípio da legalidade, deve-se evitar interpretações alargadas ou que ampliem sobremaneira o alcance de normas penais, notadamente as que geram incriminações. Conforme se observa do artigo 216-A do CP, a prática do assédio está condicionada à existência de uma relação de superioridade hierárquica ou de subordinação profissional entre o criminoso e a vítima. Condição essa que, por exemplo, não se verifica nas festividades de carnaval entre pessoas desconhecidas. “Desse modo, e apesar da resistência de certa doutrina, há de se imaginar o assédio sexual como figura criminosa unicamente em relações de emprego[iv].

Contrariando esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela existência de assédio sexual a partir da relação existente entre professor e estudante:

“RECURSO ESPECIAL. ASSÉDIO SEXUAL. ART. 216-A, § 2º, DO CP. SÚMULA N. 7 DO STJ. NÃO APLICAÇÃO. PALAVRA DA VÍTIMA. HARMONIA COM DEMAIS PROVAS. RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO. INCIDÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. Não se aplica o enunciado sumular n. 7 do STJ nas hipóteses em que os fatos são devidamente delineados no voto condutor do acórdão recorrido e sobre eles não há controvérsia. Na espécie, o debate se resume à aplicação jurídica do art. 216-A, § 2º, do CP aos casos de assédio sexual por parte de professor contra aluna. 2. O depoimento de vítima de crime sexual não se caracteriza como frágil, para comprovação do fato típico, porquanto, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal Superior, a palavra da ofendida, nos delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas que instruem o feito, situação que ocorreu nos autos. 3. Insere-se no tipo penal de assédio sexual a conduta de professor que, em ambiente de sala de aula, aproxima-se de aluna e, com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, toca partes de seu corpo (barriga e seios), por ser propósito do legislador penal punir aquele que se prevalece de sua autoridade moral e intelectual – dado que o docente naturalmente suscita reverência e vulnerabilidade e, não raro, alcança autoridade paternal – para auferir a vantagem de natureza sexual, pois o vínculo de confiança e admiração criado entre aluno e mestre implica inegável superioridade, capaz de alterar o ânimo da pessoa constrangida. 4. É patente a aludida “ascendência”, em virtude da “função” desempenhada pelo recorrente – também elemento normativo do tipo -, devido à atribuição que tem o professor de interferir diretamente na avaliação e no desempenho acadêmico do discente, contexto que lhe gera, inclusive, o receio da reprovação. Logo, a “ascendência” constante do tipo penal objeto deste recurso não deve se limitar à ideia de relação empregatícia entre as partes. Interpretação teleológica que se dá ao texto legal. 5. Recurso especial conhecido e não provido. Decisão Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma, prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Antônio Saldanha conhecendo parcialmente do recurso e negando-lhe provimento, sendo acompanhado pela Sra. Ministra Laurita Vaz, por maioria, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Rogério Schietti Cruz, que lavrará o acórdão. Vencido o Sr. Ministro Relator. Votaram com o Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz os Senhores Ministros Nefi Cordeiro, Antonio Saldanha Palheiro e Laurita Vaz[v].

O que realmente costuma ocorrer nas festividades de carnaval, nos transportes coletivos ou mesmo nas ruas é a prática do crime previsto no artigo 215-A do CP, denominado de importunação sexual, que consiste em “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, impondo pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, na hipótese de não configurar delito mais grave.

O crime de importunação sexual foi inserido no Código Penal no ano de 2018, especialmente após a comoção social causada pela notícia de alguns episódios nos quais alguns sujeitos se masturbavam ou ejaculavam em mulheres dentro de ônibus, trens e metrôs[1].

Analisando à época, separadamente, o caso do sujeito que, sem tocar a vítima, lançou esperma nela, por meio da ejaculação, entendeu-se, pela ausência de tipo penal específico, pela atipicidade da conduta[vi]. Reforçando, o crime de importunação sexual não existia no ordenamento jurídico em 2017.

Em síntese, para que se possa falar no delito de importunação sexual, além de manter contato físico com a vítima, o agressor não pode se valer de violência física, grave ameaça e nem da situação de vulnerável da ofendida, com vistas à obtenção do ato libidinoso. O criminoso age contra a vontade, a autodeterminação da vítima, mas não a subjuga. Logo, trata-se de um crime subsidiário por natureza. Se o ato libidinoso é praticado após o agente imprimir violência física ou grave ameaça à vítima, tem-se configurado o crime de estupro (art. 213 do CP). Se a prática do ato libidinoso ocorre durante estado de vulnerabilidade da vítima, como embriaguez, sono ou doença, tem-se configurado o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).

Assim, pode caracterizar o tipo penal em exame (art. 215-A) quando o agente pratica o ato libidinoso prevalecendo-se de uma impossibilidade física da vítima se livrar da sua intervenção, sem, contudo, ser necessário empregar força física (ex: transporte público lotado)[vii].

Concluindo, o crime de importunação sexual é o que mais se adequa às práticas criminosas contra a liberdade sexual, tradicionalmente, vistas no período carnavalesco, especialmente em blocos, pipocas ou festas ao ar livre em geral.

Que tenhamos mais campanhas de conscientização. Que tenhamos mais fiscalização e respeito às mulheres. Que saibamos, enquanto sociedade e individualmente, respeitar as mulheres. Que o nosso carnaval seja incrivelmente festivo e inesquecível.

NÃO É NÃO EM QUALQUER LUGAR!

RESPEITEMOS AS MINAS!

Até a próxima semana.


[1] Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41115869


[i] Paulo Thiago Fernandes Dias – Advogado. Professor universitário (CEUMA e UEMASUL). Pesquisador-líder do grupo de pesquisa “Instituições do Sistema de Justiça e Dignidade da Pessoa Humana” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5436723442142911). Expert na comunidade jurídica “Criminal Player”. Doutor em Direito Público (PPGD/UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PPGCRIM/PUCRS). Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (UGF). Bacharel em Direito (ICJ/UFPA). Instagram: @paulothiagof

[ii] Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-jan-17/o-protocolo-federal-nao-e-nao-e-os-desafios-para-sua-implementacao/

[iii] Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/12/lei-do-nao-e-nao-exclui-igrejas-de-protocolo-de-protecao-a-mulheres.shtml

[iv] Fonte: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Dos crimes contra a liberdade sexual. In: REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Código Penal comentado. São Paulo: Saraivajur, 2023, p. 728.

[v] Fonte: STJ – Resp. n. 1759135/SP, 13/08/2019. Disponível em: https://www.lexml.gov.br/busca/search?keyword=stj+resp+1759135&f1-tipoDocumento=

[vi] Fonte: DIAS, Paulo Thiago Fernandes; ZAGHLOUT, Sara Alacoque Guerra; CUNHA; Tiago Lorenzini. Que tipo de constrangimento caracteriza o crime de estupro? Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/que-tipo-de-constrangimento-caracteriza-o-crime-de-estupro-por-paulo-thiago-fernandes-dias-sara-alacoque-guerra-zaghlout-e-tiago-lorenzini-cunha

[vii] Fonte: PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. Londrina: Thoth editora, 2023, p. 551.

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