Quando a corte de Dom João 6º chegou ao Brasil em 1808, as mulheres que desciam dos navios usavam turbante. Pronto! Logo grande parte da população feminina do Rio de Janeiro (à época com 60 mil habitantes) passou a usar aquela faixa de tecido enrolada na cabeça. As brasileiras acreditavam que usar turbante era a última moda nas cortes europeias, no caso, Portugal.
Era engano. As mulheres que vinham nos navios foram atacadas por piolhos, muitos piolhos. Não dava para suportar tantos bichinhos daqueles durante cem dias, o tempo da viagem entre Lisboa e o Brasil. Resultado: tiveram de cortar todo o cabelo e jogar fora as perucas, ambos tornados depósitos e criadouros daqueles insetos.
Além disso, as mulheres foram obrigadas a passar na cabeça gordura animal e enxofre, elemento químico mais do que fedorento, odor assemelhado ao do ovo podre e que já foi comparado ao “cheiro do inferno em chamas” – credo!
E para não se mostrarem carecas e para “abafar” o mau cheiro que exalavam, as mulheres cobriram suas cabeças com turbantes.
Como se vê, há sempre uma história por baixo dos panos…
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Capulana é um desses panos. Nela tudo é metáfora e História – em suas partes e em seu processo. Em suas formas e em suas funções. Em seus desenhos e coloridos. Em sua ancestralidade asiática, arábica, e em sua aculturação africana, moçambicana.
Capulana é pano, tecido, fazenda. Quase sempre áspera, às vezes lisa. Natural ou artificial: algodão, linho, seda, fibra sintética. Na feira ao livre ar e na loja, mercado, bazar.
Na capulana, trama e urdidura são mais que fios que se (entre)cruzam: são histórias que se contam e encontram.
Capulana é vida, alegria e morte. Veste a noiva. Carrega o bebê. Traz a colheita. Vai à festa. Esconde o choro. Revela o luto.
Capulana assume formas e funções. É o tecido feito e o que se faz com o tecido. Capulana é indumentária, roupa, vestuário. É toalha, lenço e lençol. Cobertor e cortina. É saia, sari e sarongue. É touca, turbante, echarpe. É vestido e polaina, canga e tanga. É calça, camisa e calção.
Capulana é desenho, estampa e pintura. História, Arte, Cultura. Suporte de mensagens educativas e sociais, de propagandas políticas e publicidades comerciais.
Capulana é laço, vínculo, união. É economia, moda, decoração. Identidade e Tradição, Poder e Religião.
Capulana é sujeito que sujeita diversos verbos, pois ela veste, enrola, traja. Envolve, põe, volteia. Estende, circunda, rodeia. Cobre, protege, agasalha. Adorna, enfeita, orna.
E educa.
Sim, educar. Pois capulana é um pano que não é apenas para (se) vestir. Um pano que não é mais para só cobrir(-se).
Sim, há um pano que, mais que vestuário, é símbolo. Ele comunica. Informa. Educa.
Pano é tecido. E “tecer” é o primeiro verbo deste livro, e seu penúltimo. Um tecido e indumentária, a capulana é, neste livro, um dos sujeitos principais, depois das mulheres professoras.
A mulher é a tecelã do homem e também de si, e de muito mais, inclusive, como a Autora registra aqui, “das coisas e das palavras”, pois “toda mulher carrega uma casa dentro de si”. Do ventre vestíbulo — gerar, gestar, gerir — ao colo-abrigo onde filhos e homens e amores se colam e se abrigam, pousam e repousam.
Tanto em letras quanto nas imagens, a capulana é revelada como o verdadeiro tecido social, seja por sua utilidade no cotidiano ou por sua variedade de usos; seja pela função educativa que tem, seja pela História coletiva que contém.
A capulana é tecido. É têxtil. E é texto. Tecido que, ao longo dos tempos, tem sido tenso, intenso. Fio e fibra — fio da História, fibra da mulher.
Tensão, intensidade, fibra… No desfiar dessa História, nas voltas que a capulana dá, e deu, as mulheres negras e seus companheiros, filhos, familiares, retirados da plena liberdade de suas terras e escravizados pela força opressora, má, violenta, criminosa de brancos em busca de lucros.
Jogadas também em porões de navios, em um mar de desrespeitos ao que é Direito, ao que é Humano, ao que são Direitos Humanos, as mulheres procuravam resistir com crianças em capulanas às costas e um (in)certo futuro à frente.
O Atlântico era um oceano muito mais comprido e dolorido do que os dois, três meses de viagem. Havia um excesso de carências: comida, água, higiene, respeito… Cingida ao torso, à cabeça, às costas, a capulana era a memória têxtil, o tecido que carregava um pouco da História, da Cultura, da Liberdade, da prática identitária cotidiana, deixadas forçadamente para trás no solo pátrio, na terra máter.
Como documenta a Autora, a capulana, utilizada pelas professoras e alunos, reencontra na Educação seu ambiente de liberdade: “educar”, na origem (ex + ducere), significa “conduzir para fora”, “deixar de ser conduzido” — ou, tudo isso, libertar-se.
Com seu “De ‘Mulher-Maravilha’ a ‘Cidadão Persi’: Professoras Capulana do Educar em Direitos Humanos”, livro inaugural, Maria do Socorro Borges da Silva, técnica, inventiva, poética, oferta uma parte de sua tese de doutorado em Educação, uma parte íntegra e consistente o suficiente para não se sentir falta do todo…
…e ao mesmo tempo desejá-lo.
Parabéns, Socorro Borges.
Nós, do site Região Tocantina, queremos desejar, a todos os nossos leitoras e nossas leitoras, um FELIZ NATAL, repleto de fé, alegria, paz, saúde e felicidade.
E que as comemorações possam realçar nossos melhores e duradouros sentimentos.
FELIZ NATAL!
4 respostas
Que maravilha a análise de Edmilson Sanches desse “tecido que fala”. Um embrião dos meus começos de uma literatura
menor sociopoetica. Tenho muita gratidão ao seu trabalho de crítica literária e anúncio que coloca em circulação escritores maranhense.
Sempre é gratificante se prender em sua nobre escrita. Eu mergulho na leitura que me sinto dentro de cada palavra. Gratidão
Uau!!! Quanta história por trás dos panos. Excelente texto, como sempre.
É além de um texto bem trabalhado, um mergulho nos bastidores da história do Brasil! No qual o autor faz uso de um tecido usado pelos negros escravizados para, de forma poética, mostrar toda a cultura e sofrimento de um povo desrespeitado no seu íntimo; em suas famílias! A Capulana representa essa bandeira de lutas. Esse incontetamento. Parabéns pela beleza de narrativa! Que prende a atenção do leitor até o final.