No último dia 12/01/2024, foi sancionada a Lei nº 14811, responsável pela promoção de medidas de proteção à criança e ao adolescente, para que não sofram violência no âmbito de escolas ou estabelecimentos congêneres, efetuando alterações em três atos normativos ao mesmo tempo: Código Penal, Lei dos Crimes Hediondos e Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa lei estabelece também a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente[i].
Em relação ao Código Penal, as mudanças se deram no sentido da criação de uma nova espécie do crime de constrangimento ilegal, tipificado no artigo 146-A como intimidação sistemática (bullying) e no seu parágrafo único como intimidação sistemática virtual (cyberbullying). Ademais, a nova lei instituiu novas causas de aumento de pena para os crimes de homicídio (Art. 121, §2º-B, III) e induzimento, instigação e participação no suicídio ou na automutilação (Art. 122, §5º).
Analisando apenas o que a Lei nº 14811/2024 proporcionou de mudanças no Código Penal, o que se tem não passa de mais do mesmo: um punitivismo estéril encartado em mais uma lei penal simbólica.
Originária do Projeto de Lei n° 4224, de 2021, a Lei nº 14811/2024 não responde questões fundamentais, que deveriam ter sido consideradas como requisitos para a aprovação desse projeto pelo Congresso Nacional: qual o impacto social desse novo recrudescimento da norma penal no Sistema Penitenciário? O orçamento público está preparado para as despesas decorrentes da fiscalização, processamento e eventuais condenações decorrentes da nova lei? Como se dará a organização/estruturação das forças de segurança pública diante dessas novas figuras penais? Os Estados-membros estão capacitados (de pessoal e material) para a efetiva aplicação dessa nova legislação?
Essas perguntas seguem sem respostas. Logo, é seguro deduzir que a nova lei já nasce fadada ao fracasso. É que a opção política pela vulgarização do Direito Penal só tem apresentado fracassos jurídicos, sociais, políticos e econômicos, com destaque para o período pós-democratização (1988).
“O Direito Penal é usado pelas sociedades como aparato para que se sintam mais seguras contra o aumento da criminalidade e das condutas consideradas ofensivas à sociedade. Esta, fortemente influenciada pela mídia, defende a atuação máxima desse ramo do Direito, visando não apenas a garantia de segurança, como também a aplicação de punições para satisfazer seu ideal de vingança contra crimes cometidos. Para isto, o poder punitivo tem seguido os seguintes caminhos: ou aumenta as punições a crimes já previstos pelo ordenamento jurídico (como ocorre em muitos países no combate dos delitos ligados ao tráfico de entorpecentes) ou o legislador tipifica novas formas de delitos, antes não juridicamente condenáveis (como condutas de mera comunicação, tais quais os delitos que instigam o ódio racial). Num geral, ocorre a ampliação da punição, ou seja, o Direito penal simbólico tem se utilizado do punitivismo para alcançar seus fins”[ii].
Especificamente sobre o novo crime do artigo 146-A, caput, do CP, sequer é possível encontrar pontos positivos na mera redação do dispositivo em comento, segundo o qual será punida com multa, na hipótese de não configurar crime mais grave, a pessoa que “Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais”[iii].
O texto acima fala punirá a pessoa que intimida outra por meio de atos de intimidação… Já dava pra parar por aqui. Entretanto, segundo o atencioso Poder Legislativo (ironia…), mesmo que o delito seja praticado com violência (física ou moral) contra a(s) vítima, a pena do caput será apenas uma multa (caso não configure crime mais grave). Ora, o que isso quer dizer: “caso não configure crime mais grave”? O delito de furto, por exemplo, cuja forma de execução não envolve violência e grave ameaça à vítima é punido com pena de reclusão de um a quatro anos e multa[iv]. Pode-se dizer que um crime patrimonial não violento merece uma punição mais severa do que um delito praticado com violência à pessoa?
O dispositivo é visivelmente inconstitucional, ante à ofensa ao princípio da proporcionalidade. Mas quem se importa, não é verdade? Mais vale é sair divulgando nas redes sociais, com artes engraçadinhas e chamativas que “bullying agora é crime”… Uau!
Pra fechar, o que se deve entender por “[de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente]”? A conferir quais serão os contorcionismos intelectuais utilizados pelos brilhantes doutrinadores de cursinhos (ironia) para a definição dessa mais recente pérola do maravilhoso ordenamento jurídico penal brasileiro (muita ironia).
Sobre a prática do bullying em si, obviamente que ela é reprovável e digna de toda a atenção da sociedade civil e do Estado. Entretanto, não é com leis penais simbólicas e disformes que um problema tão sério será, minimamente, enfrentado com dignidade. É preciso dar um basta nessa política criminal expansionista irresponsável, cara e demagógica.
[i] Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14811.htm
[ii] OLIVEIRA, Rénad Langamercardozo De. A expansão do Direito Penal. In: ROCHA, Lilian Rose Lemos; BINATO JÚNIOR, Otávio (Coords.). Caderno de pós-graduação em direito: criminologia. Brasília: UniCEUB: ICPD, 2016, p. 52.
[iii] Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14811.htm
[iv] Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm