E por falar em começos, comecei este ano lendo uma escritora que há tempos (mas bote tempo nisso, meu povo!) eu queria ler.
Falo de uma escritora que Conceição Evaristo, cuja obra também estou descobrindo, diz ter sido – e eu não duvido! – a sua grande inspiração.
Falo de uma mulher negra que, com sua escrita corajosa, autêntica e desviante da norma (culta), abriu caminho para muitas vozes periféricas que vieram depois dela.
Imagino que já tenha atinado que estou me referindo a…
Isto mesmo! Me refiro a Carolina Maria de Jesus!
Há tempos eu vinha tentando arrumar horário pra poder sentar e ler os livros dessa autora, e no último dia do ano passado essa hora chegou. Aliás, fiz com que essa hora chegasse! Sentei diante do cão-pata-dor, como diria o Didi, abri Quarto de Despejo e… Criatura, de lá para cá li quatro livros dela, numa sentada!
Primeiro li Quarto de Despejo, de 1960, onde ela conta a vida miserável que levava na favela até antes desse livro ser publicado e ela conhecer a fama. Carolina compara a cidade a uma casa, com dois cômodos principais: a sala de visitas, que simboliza os bairros nobres, onde vivem os mais abastados; e o quarto de despejo, onde fica tudo o que a sociedade quer jogar fora, e que simboliza as periferias, onde vivem os miseráveis. Daí o livro ter esse título, referindo-se às favelas de São Paulo daquela época. Quarto de Despejo foi traduzido para várias línguas e ainda hoje segue sendo uma leitura impactante, porque a miséria… bem, a miséria é uma desgraça constante!
Logo em seguida li Casa de Alvenaria, de 1961, onde ela conta a reviravolta que viveu depois da fama repentina. É que a sala de visitas, quando vista de longe, parece o paraíso, mas quando a gente se aproxima… Vixe Maria! Foi também um período de descobertas e crescimento para Carolina, que foi perdendo a ingenuidade pouco a pouco, como se pode perceber em trechos como este aqui: „Circulei o meu olhar pela platéia, contemplando aquela gente bem nutrida, bem vestida. Ouvindo a palavra fome, abstrata para eles.“ (1).
E Carolina não escrevia só diários, visse? Ela escreveu também poemas, letras de canções e romances, como Pedaços da Fome, de 1963, ou A Felizarda, como ela chamou originalmente a história. Li este livro logo após ter lido Casa de Alvenaria. Se trata da história de uma jovem rica do interior, filha de um fazendeiro, uma moça exageradamente ingênua. Contrariando os pais, ela se casa com um cabra mentiroso que, fazendo-se passar por doutor, leva a moça pra São Paulo e lhe promete mundos e fundos. Chegando à grande capital, passam a viver uma vida de privações até que um dia são obrigados a ir morar numa favela. É bem verdade que Carolina escreve esse romance com muita ingenuidade, mas também com competência para espelhar imagens do que ela criticava na sociedade da sua época.
Li também Provérbios, onde ela reúne várias frases, muitas das quais bem humoradas, como esta pérola: “Existem pessoas que estudam. Em vez de receber um diploma deveriam receber uma ferradura.” (2). Quando li esta frase, rolei de tanto rir! E não é uma verdade?! Uma coisa é ter um diploma; outra coisa bem distinta é ter boa educação… Bom senso então, nem se fala!
Em cada um destes textos li Carolina em suas próprias palavras, embora eu não possa me esquecer que as edições que tenho são ainda as primeiras, que sofreram muitas alterações por parte de seus editores. Sei que sua obra foi recentemente relançada por uma grande editora brasileira, mas essa nova “roupagem” eu ainda não tive a chance de conferir. Quem sabe num futuro próximo, não?
Há vários estudos sobre a obra de Carolina, muitos deles disponíveis de graça na internet, como o ensaio realizado pela pesquisadora brasileira Regina Dalcastagnè (3), que se pode ler em português e em alemão. Esses textos nos dão n motivos para ler e valorizar a obra de Carolina e posso dizer que eu, lendo o que ela escreveu de próprio punho, descobri uma autora autodidata com forte personalidade, com alma sensível, poética, crítica e alegre, dona de um contagiante senso de humor, apesar de todos os pesares que ela passou. Sobretudo, Carolina era uma pessoa que tinha muita empatia com o sofrimento dos demais. Em suma: uma mulher admirável que precisa ser conhecida – e reconhecida – em todo o mundo!
Pois bem, ler e coçar… é só começar. Fica então a sugestão: leia Carolina!
E caso ainda não tenha lido, trate de ler também os textos de Conceição Evaristo, porque desencastelar a escrita é necessário – e possível!
Referências bibliográficas
(1) Carolina Maria de Jesus (1961): Casa de Alvenaria, Editora Paulo de Azevedo Ltda, página 180.
(2) Carolina Maria de Jesus (1962): Provérbios, publicação independente, página 14.
(3) Regina Dalcastagnè (2023): Carolina Maria de Jesus: uma voz insubmissa na literatura brasileira = Carolina Maria de Jesus: eine unachgiebige Stimme der brasilianischen Literatur, Instituto Guimarães Rosa.