—- Da origem e sentido de palavras e dos fins sem sentido de agressões
DATA – 16, 19 e 21 de outubro de 2022.
PAÍS – Brasil. ESTADOS – Alagoas, Rio de Janeiro, São Paulo.
(DES)QUALIFICATIVOS – Bruxa. Prostituta. Puta. Vagabunda.
SUBSTANTIVOS (ANTROPÔNIMOS) – Carmen. Laura. Marina. Michelle.
Segundo a estranha (senão louca) percepção de muitos, Carmen e Marina estão de um lado. Laura e Michelle, de outro. É tempo de eleições, a maior delas, no Brasil.
“Carmen” (latim “carmen”), na origem, significa “canto”, “canção”, “poema”.
“Laura” (latim “laurus”) significa “vitoriosa”, “triunfadora”. O nome vem do “louro” ou “loureiro”, a planta com cujos ramos, na Roma e Grécia antigas, se fazia a coroa (“corona triumphalis”) colocada na cabeça de heróis e outros vencedores, pessoas de destaque nas Artes, no Atletismo, nas Guerras… As flores e folhas dessa planta têm ou assumem cores/tonalidades amarelas ou douradas.
“Marina” (latim “marinus”) significa “do mar”.
Michelle (do francês “Michéle”, originado do hebraico Mikhael, união de “mikhayáh” e “El”), significa “Deus é incomparável” ou “Quem é como Deus?”
Eram as melhores as intenções dos pais das quatro mulheres acima quando lhes deram o nome que cada uma carrega até hoje. O amor dos pais e o sentido da Etimologia se igualam na origem: os nomes Carmen, Laura, Marina e Michele são bons e, histórico-linguisticamente, têm nobreza, nobreza de modos e não necessariamente de majestade.
Mas, em menos de uma semana, de 16 a 21 de outubro de 2022, esses nomes (ou quatro mulheres portadoras deles), foram objeto da mais baixa vileza, da mais vil baixeza que habita cada um de nós e que, em certas situações, muitos de nós deixamos aflorar, vir à tona.
Nesses casos, não importa o porquê: qualquer que seja ela, a razão é torpe, a justificativa é ignóbil, o motivo é infame, a origem é suja, o argumento é nojento, a causa é asquerosa. Falou aquelas palavras maculadoras de ou para uma mulher, já está errado. E dizer que uma mulher é bruxa, prostituta, puta ou vagabunda por escrito ou em áudio, em redes sociais, em suportes impressos ou digitais, mais errado ainda. E dói saber do sofrimento íntimo — e quiçá duradouro, eterno — de cada uma das vítimas, cada uma à sua maneira, por terem o substantivo de seu nome obscenamente ligado à repulsa daquele (des)qualificativo.
Se você acha que é exagero, permita-se ouvir de algum boca-suja chamar sua filha, irmã, esposa, mãe, avó de nomes como estes quatro – bruxa, prostituta, puta, vagabunda.
Carmen, que é jurista e ministra, foi ofendida (“bruxa”, “prostituta”) por Roberto, que é advogado e ex-deputado federal, no Rio de Janeiro. Era 21 de outubro de 2022.
Em 16 de outubro de 2022, Laura era criança, estudante, tinha 11 anos e foi ofendida (“puta”) por uma mulher Bárbara, jornalista aposentada, de São Paulo, como antecipado “presente” por seu aniversários de 12 anos dois dias depois. E dois dias depois, no colégio e no dia do aniversário, repetiu-se o “presente” para Laura: um garoto, reconhecendo-a, perguntou: “Você é a puta?” Gente bárbara faz escola…
Marina, que é professora e política, foi ofendida (“vagabunda”) por uns comensais, anônimos e aloprados, em restaurante em Minas Gerais. Era 21 de outubro de 2022.
Michelle, que é intérprete de Libras e ex-primeira-dama do Brasil, foi ofendida (“vagabunda”) por uma mulher, Samya, procuradora-geral, de Alagoas. Era 19 de outubro de 2022.
Quer saber mais sobre as quatro ofensas, veja na Internet.
Não é por nada, não, mas, lamentando profundamente os xingamentos a essas (e a outras) mulheres, fico me perguntando sobre a criança mulher. Não fomos nós brasileiros, por nossos representantes federais, que asseguramos em Lei (nº 8.069, de 13 de julho de 1990) que:
— “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, MORAL, espiritual e social, em condições de liberdade e de DIGNIDADE”;
— “Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, SEM DISCRIMINAÇÃO de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.”;
— “É dever da família, da comunidade, DA SOCIEDADE EM GERAL e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à DIGNIDADE, ao RESPEITO, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”;
— “NENHUMA CRIANÇA ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”?
É claro, sabemos que muito antes de Laura e muito depois dela violências verbais e físicas se somarão e assomarão o corpo e a mente de gente criança e adolescente que nem ela. O Brasil ainda é, sob qualquer ângulo, muito injusto…
Quanto à mulher Bárbara, que falou de Laura, tarimbada que é, de família de história em São Paulo, sabe se defender e o que dizer. Disse, entre outras coisas, à “Carta Capital”, em 24/10/2022, oito dias após juntar criança e puta na mesma frase: “Eu sempre vou até o limite. O que sempre faço é polemizar. Fiz a minha vida inteira, tentar ir até o mais longe possível. É como um comediante com a sua piada. Obviamente, fui longe, admito que esse meu ‘tweet’ realmente é ousado. Mas ele não está insultando ninguém”. E continua: “É óbvio que eu estou absolutamente horrorizada com o que eles estão fazendo comigo, porque eles pegaram um ‘tweet’ de uma pessoa que não tem mais uma vida pública, que é uma pessoa particular, e transformaram num fato político. Me jogaram numa frigideira. Pegaram, para variar, uma jornalista mulher, aposentada, que não trabalha em nenhum veículo, que não pode se defender.”
Como se lê, as mulheres sabem se defender. Perpétua Almeida, deputada federal do Acre (PCdoB) alevantou-se: “Nós não podemos aceitar nenhum desrespeito às mulheres” (“Estado de Minas”, 22/10/2022). Simone Tebet, senadora (MBD-MS) foi no mesmo tom: “Ninguém tem o direito de agredir uma mulher, seja ela uma autoridade pública ou não […]” (“Correio”, Salvador – BA). Estas duas defesas ou alertas foram em favor da ministra Carmen Lúcia, 68 anos à época, chamada de “bruxa” e “prostituta”.
Essas duas defesas ocorreram seis dias depois de, na rede social (microblog) Tweeter (hoje, “X”), Laura, de 11 anos, ter sido chamada de “puta”. Como o Brasil agora se divide em dois lados, um dos lados não socorre, não defende, não alerta, não se indigna, não se comove se o ocorrido ocorre — correntemente — com o lado oposto. Nem mesmo quando se trata de uma criança. Alguém de um lado expressar-se em favor de alguém do outro lado não é de bom tom. É obrigado ser partidário. É proibido ser humano… “Partidário” é agente interesseiro em poder. “Humano” é gente interessada em civilidade.
Aqui, nenhuma intenção de demover nem “a” nem “b” de seus princípios e fins, erros e acertos. Já escrevi que, em certas situações e com certas pessoas, nenhum argumento é preciso, e, em certas situações e com certas pessoas, todo argumento é inútil. Deste modo, apenas exerço o livre direito à expressão (escrita) do pensamento — ainda pode? Creio que, do jeito que falo e escrevo, eu não seja desrespeitoso — pelo menos não mais e bem distante do que a todo instante se lê, se vê, se ouve por aí.
Suetônio (69-141), escritor romano, creditou a Calígula o lema “Oderint , dum metuant”. A frase é de um drama de Cícero (106 a. C.–43 d. C.). Em português, fica-se sabendo que ela resume sentimentos humanos antípodas mas necessários à convivência:
“Odeiem-me, contanto que me respeitem”.
Mas estamos no moderno Brasil, não na Antiga Roma…
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Além das quatro pessoas que sofreram os xingamentos, além daquelas que os promoveram, outros entes igualmente se contraíram nessa “Guerra de Seis Dias” de desqualificação de mulheres: as palavras, quatro, todas também femininas, todas substantivas, todas também com sua história, sua peculiaridade, seu… respeito:
BRUXA – A palavra “bruxa” (de um ainda não provado latim “brouxa”) registra-se em Língua Portuguesa desde 1559. Neste caso, seu uso não tem a ver com seu sinônimo “feiticeira”, mas com dotes de beleza (ou falta deles) ou com estado de espírito (mal-humorada, azeda).
PROSTITUTA – Chamadas de “mulheres de vida fácil”, as prostitutas estão longe de ser o que lhe chamam. Não saber com que tipo de parceiros vai-se envolver em suas saídas, se vai ser amada ou também espancada, humilhada, se conseguirá o necessário para sobreviver mais um dia, se conseguirá ter um futuro longe do ofício — eis o que esperam essas mulheres todos os dias, e noites. O nome que denomina a pessoa e a atividade (prostituição) resulta também de um encontro: a união do prefixo greco-latino “pro-“ (que tem, entre outros significados, o de “diante de”) mais o interpositivo “-stare-“ (que significa “estar de pé”). Juntando-se, fica: “estar de pé diante de” — neste caso, estar de pé, exposta, “à venda” (está na etimologia da palavra), frente à rua, frente ao vidro (como na Holanda), frente ao possível futuro cliente…
PUTA – A palavra atirada – barbaramente — contra Laura criança traz na sua origem a inocência infantil… que os adultos logo deturpariam. Realmente, a palavra “puta” tem origem no latim popular “puttus” / “putta”, com o significado de “menino” / “criança”, nome aplicado pelas famílias romanas em lugar do latim culto “pueri”, presente em adjetivos como “pueril” (“infantil”) e “puérpera” (mulher que acabou de ter uma criança) e, entre outras, “puericultura” (ciência do desenvolvimento físico e psíquico da criança, da gestação à puberdade). Ainda hoje, em Portugal, nomina-se uma criança como “puto” ou “puta”. Veja-se também a conexão com o também latim “putus”, com um só “t”, que tem o significado de “puro” — e com cujo sentido de “apurar uma conta” veio contribuir para a formação da palavra “computar”, “computador” e seus derivados e conexos.
VAGABUNDA – O antepositivo latino “vagus” (significando “que se move de um lugar para outro”, “errante”, “desocupado”) juntou-se ao sufixo latino “-bundus” (“’cheio de, propenso a”) e, com essa riqueza de ociosidade, formou esse substantivo que se aplica à pessoa que leva a vida sem trabalhar, “na flauta”, que perambula, pessoa vadia e, pejorativamente, o malandro, o canalha, gente inferior etc.
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Certa vez, quando, menor ainda, adquiri o “Aurélio de fardão” (a versão com encadernação almofadada do “Dicionário Aurélio”), li que as três palavras com maior número de sinônimos eram: dinheiro, bebida… e mulher. Mas a “mulher” cujos significados se avolumavam no verbete principal não era a mulher “mulher”; era a mulher “vadia”, “de vida fácil”, …puta. Dezenas, senão centenas, de palavras enfileiravam-se em ordem alfabética, formando um tapete de vocábulos todos dedicados à definição desqualificadora da mulher…
Lamentavelmente, as quatro palavras de hoje e seus significados tão cedo ficarão em estado de dicionário. Elas há muito decolaram das pistas de “bits” e de celulose e tinta que as guardavam e foram pousar — pelo visto, para sempre – nas mentes e dedos e bocas dos que, incapazes de tornarem melhor a Humanidade, preferem ser o pior dela…
As palavras não têm culpa de nada. Igual às facas na cozinha, que cortam e limpam aquilo que alimenta mas também podem ferir e matar, as palavras, bem utilizadas, têm como alimentar histórias, relatos, biografias, conversas…
…ou, refletindo o pior de quem as manuseia, podem ser agressivas, ferinas, doloridas, infelizes, recalcadas… e covardes.
“Quousque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?”
Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?
Lucius Sergius Catilina, desmascarado, ficou sabendo do poder que boas palavras têm.
Hoje, infelizmente, faltam-nos os Cíceros para dizê-las.
EDMILSON SANCHES
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