A violência é algo que faz parte de todos os períodos da história. Durante as aulas de literatura para o público adulto, principalmente em cursos de pós-graduação, vez ou outra, chamo a atenção dos alunos para algumas cenas perturbadoras, como, por exemplo, os capítulos XII, XIII e XIV de Incidente em Antares, nos quais há breves, porém vigorosas descrições e narrações de episódios grotescos e carregados de violência, como pode ser visto nos fragmentos a seguir:
Depois, acercou-se de sua vítima, empunhando um grande funil de lata, cujo longo bico lhe enfiou às cegas no ânus, profundamente. (…) Dois dos seus homens, vindos do quintal do casarão dos Vacarianos, aproximaram-se, conduzindo, com todo cuidado, para não se queimarem, uma grande chaleira de ferro cheia de azeite em ebulição. (…) A uma ordem sua, os dois homens começaram a despejar lentamente no funil todo o conteúdo da chaleira. Terézio Campolargo soltou um urro e começou a estrebuchar.
Em O Cortiço, uma das obras modelares de Aluísio Azevedo, Jerônimo e seus companheiros armam uma emboscada para o capoeirista Firmo, como forma de vingança por uma briga ocorrida dias antes. O narrador descreve a cena do seguinte modo:
O capoeira, mal tocou com os pés em terra, desferiu um golpe com a cabeça, ao mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova paulada cantou-lhe nos ombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra mais violenta quebrou-lhe a clavícula, enquanto outra logo lhe rachava a testa e outra lhe apanhava a espinha, e outras, cada vez mais rápidas, batiam de novo nos pontos já espancados, até que se converteram numa carga contínua de porretadas, a que o infeliz não resistiu, rolando no chão, a gotejar sangue de todo o corpo.
Rubem Fonseca foi outro que fez das cenas violentas parte importante de seu estilo. Seus contos são repletos de momentos nos quais impera uma violência, às vezes gratuita, mas que é necessária para o desenvolvimento da narrativa. O trecho seguinte, retirado do conto Feliz Ano Novo, demonstra bem o estilo narrativo de Rubem Fonseca:
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. O peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.
São vários os exemplos de escritores que recorrem a cenas de extrema violência em suas obras literárias. A lista, dependendo do gosto literário do leitor, pode ir de Álvares de Azevedo (Noite na Taverna) a Rinaldo de Fernandes (O Perfume de Roberta), passando por Plínio Marcos (Histórias da Quebrada do Mundaréu), Patrícia Melo (O Matador), José Louzeiro (Lúcio Flávio – o Passageiro da Agonia), Paulo Lins (Cidade de Deus) e Joe Rosa (Um Brinde aos 40), entre outros.
Quase sempre, os alunos ficam impressionados com as cenas de violência reproduzidas nos livros. Alguns pedem para mudar o assunto ou até mesmo se recusam a continuar a leitura. No entanto, é preciso lembrar que as violências que aparecem em contos, poemas, romances e peças teatrais são devidamente controladas pelos escritores, que se aproveitam desses episódios provocativos para abrir algum tipo de discussão ou mesmo para despertar nos leitores a sensação de catarse. Ou seja, na literatura, mesmo em livros que sejam inspirados em fatos, o interesse maior é oferecer aos leitores alguns momentos de entretenimento, mesmo que as palavras possam ferir pessoas mais sensíveis, podendo a leitura servir como ponto de partida para diversas reflexões acerca do que acontece nos terrenos da realidade.
Como muitas pessoas parecem estar anestesiadas pelas diversas faces da realidade circundante, não se impressionam mais com o que é noticiado nas páginas da internet e nos noticiários. Dessa forma, a obra literária, às vezes, é utilizada como barreira de contenção contra os problemas diários. Assim, a mesma pessoa que se derrama em lágrimas e se indigna ao assistir a um filme, ao capítulo de uma novela, ao episódio de sua série preferida, a uma peça representada no teatro ou ao ler um livro é capaz de ficar impassível diante de notícias verdadeiras como as veiculadas nos últimos dias ou semanas: Um jovem professor esbarra propositalmente em uma idosa de 86 anos, que fraturou o fêmur durante a queda; Mulher serve cogumelos venenosos para a família e ex-marido; Mais de 10 mortos em tremor de terra no Nepal; 35 ônibus incendiados no Rio de Janeiro; Brasil teve 5 ataques com mortes em escolas entre 2022 e 2023; Líder quilombola é assassinado no Maranhão etc. etc. etc.
A violência é uma realidade que precisa ser combatida em todos os âmbitos da sociedade. A arte, como certa vez escreveu Paul Klee, “não reproduz o visível. Torna-o visível”. Dessa forma, seria excelente se o único tipo de violência com que devíamos no preocupar fosse aquela que aparece nas páginas de um livro, na tela de uma televisão ou nas salas de cinema. O sangue derramado nas ruas e nas residências deveria incomodar bem mais que as cenas descritas nos livros. A ficção liberta e enriquece nossa mente e nossa imaginação. A violência verdadeira nos assombra, seja no campo, seja nas vias urbanas ou até mesmo dentro de nossos lares.
Uma resposta
Sou das mas sensíveis pois senti náuseas ao ler. Atualmente não tolero mais a violência nem na arte, que tem sim o poder expurgo para a sociedade. Porém mudei até minhas preferencias e não tolero mais certos gêneros. Bom texto! Mais amor e menos violência!