Na literatura, sempre houve o debate se o escritor ou escritora, ao fazer poemas ou ficção, fala de si ou dos outros. Nesta entrevista, Cristiane de Magalhães, professora de Língua Portuguesa e Redação para o Ensino Médio e escritora, autora do livro de poesia “Múltiplos Lutos”, desvenda um pouco da prática da escrita como cuidado de si, que diversos autores e autoras praticaram e praticam. E ainda revela seus fundamentos e o potencial da escrita de si na vida pessoal de quem a experimenta. Vale a leitura!
Região Tocantina – O que significa a escrita como cuidado de si?
Cristiane Magalhães – É escrever sobre sentimentos, registrar pensamentos e eventos que possam ter sido, por algum motivo, traumáticos. Aquele que escreve rememora o evento e tem a chance de elaborar o que aconteceu, podendo levar à catarse, insights e ressignificação do passado. Podemos dizer que é uma autorreflexão materializada no papel nas nossas narrativas, versos e rascunhos. É um ato de autorreflexão que nos permite explorar nossa identidade, constituindo nossas subjetividades. Além disso, ajuda a desenvolver o autoconhecimento e bem-estar emocional. Manter um diário, por exemplo, é cuidar de si mesmo pela escrita de si.
Região Tocantina – Qual a função dela para você?
Cristiane Magalhães – Eu, como muitas outras meninas, escrevia em diário na pré-adolescência. O diário era o lugar seguro e sem julgamento onde eu me encontrava comigo mesma e explorava minha subjetividade e minhas crises existenciais da época (risos). Eu tinha 13 anos. Depois de um lapso de décadas, retomei a prática para lidar com o luto, quando perdi minha mãe em 2019. De lá para cá tenho permanecido com essa prática que tem se mostrado mais potente do que eu poderia imaginar lá nos meus 13 anos. Nessa idade, a gente vai escrevendo de forma intuitiva sem entender direito sua função terapêutica. Hoje, os conteúdos da vida adulta são outros, mas a escrita de si ou escrita de mim continua desempenhando um papel essencial em minha vida, servindo como uma ferramenta de autorreflexão e autocuidado. Além disso, é do meu diário que surgem algumas crônicas que vão para o site regiaotocantina.com, alguns poemas – foi de lá que saiu meu livro Múltiplos Lutos – e algumas ideias de aula. O diário representa também um lugar de “refúgio” à hiper-conectividade, uma alternativa para lidar com as emoções nos dias muito agitados e uma forma de lidar com a “solitude” – que não é a mesma coisa de solidão. Na vida profissional, oriento adolescentes do Ensino Médio a manter um diário como ferramenta para desenvolver as competências socioemocionais (competências estabelecidas pela BNCC) durante as aulas de Projeto de Vida na escola Professor Edinan Moraes, na Rede Estadual de Ensino. Além disso, incentivo a escrita autoral de auto ficção em minhas aulas de Língua Portuguesa, a partir da escrita de diários.
Região Tocantina – Você pode citar autores e autoras que praticam a escrita como cuidado de si, na literatura brasileira?
Cristiane Magalhães – São muitos. Vou começar mencionando Clarice Lispector, pois, embora não usasse essa nomenclatura, ela se aprofundava em experiências subjetivas em seus textos. Algumas de suas crônicas escritas para o Jornal do Brasil na década de 70, por exemplo, guardavam viés fortemente autobiográfico, caracterizando escrita como cuidado de si. Além dela, temos também a escritora negra Carolina Maria de Jesus, que ousou expor a crueza de sua luta diária enquanto moradora de uma favela e toda sua realidade difícil de criar os filhos e perseguir o sonho de ser escritora em uma sociedade racista e excludente. Outro exemplo é Lima Barreto, que também revelou nuances autobiográficas em suas obras. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o personagem, que é também narrador, é descrito por muitos críticos como o próprio Lima Barreto falando de suas frustrações e desapontamentos. Há também uma jovem e premiada escritora contemporânea: Aline Bei. Em uma entrevista cedida ao Estadão ela disse: “o ‘Pássaro’ é um livro de ficção. Mas é a minha ficção, por isso ele também é pessoal, o processo de escrita é assim.” Referia-se a O Peso do Pássaro Morto, seu romance de estreia que lhe conferiu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2018. Para finalizar, no âmbito da poesia, temos a contemporânea gaúcha Mar Becker e inúmeros nomes clássicos, tais como Fernando Pessoa, Mário Quintana, Carlos Drummond, Ana Cristina César, Paulo Leminski. Na Região Tocantina, temos Juliane Sousa, Samanta Matos e Hyana Reis e, com a devida permissão, incluo-me também nessa lista como alguém que se arrisca em versos e linhas autobiográficas.
Região Tocantina – É possível aprender a fazer esta escrita de si?
Cristiane Magalhães – Sim. Começamos pelo que temos e somos: nossas memórias, nossa trajetória de vida. É aí que reside o ponto de partida para descobrirmos tesouro onde antes acreditávamos haver apenas dor. E para criar o hábito, é aconselhável manter um diário íntimo, escrever de maneira honesta, intuitiva e sem se preocupar com regras gramaticais, a menos que se queira publicar. Como essa pode ser uma caminhada difícil de desbravar sozinho, um orientador ou mentor facilita o processo de ressignificação por meio de oficinas, aplicando exercícios e técnicas respaldadas em conhecimento teórico. Podemos dizer que o mentor é quem dá a mão ao “aprendente” na instigante caminhada para dentro de si mesmo.
Região Tocantina – Que teoria subjaz esse tipo de escrita?
Cristiane Magalhães – A escrita como cuidado de si tem base interdisciplinar. As áreas do conhecimento que subjazem esse tipo de escrita são Literatura, Filosofia, Psicologia entre outras. Ela se baseia na ideia de que a autorreflexão, como mencionei acima, e a expressão escrita podem promover o autoconhecimento, a resiliência emocional e o crescimento pessoal. A prática também se alinha aos conceitos de mindfulness, ao incentivar a atenção plena às próprias experiências. Na Literatura, explora-se o efeito catártico da escrita e, a partir dos estudos de Philippe Lejeune, mencionando apenas um teórico literário, busca-se entender como a autobiografia se constitui como gênero literário; na Filosofia, o filósofo Michel Foucault explorou o engajamento do sujeito em práticas de autorreflexão pelo conceito de cuidado de si, para melhorar a si mesmo e abrir espaços para novas formas éticas de existência; na Psicologia, existem robustos estudos sobre a “escrita expressiva” e suas implicações na melhora de quadros de ansiedade, depressão e até melhora da imunidade. O leitor não leu errado. Escrever pode ter implicações biológicas. O mais conhecido nesse sentido foi o Psicólogo social norte americano James Pennebaker.
Região Tocantina – Como a escrita como cuidado de si pode melhorar a vida das pessoas?
Cristiane Magalhães – Quero começar a resposta trazendo esses dois trechos de duas mulheres de épocas diferentes relatando o significado da escrita em suas vidas: “O melhor de tudo é poder escrever todos os meus pensamentos e sentimentos; se assim não fosse, já teria sufocado completamente. ” Palavras do diário de Anne Frank, em 16 de março de 1944, na casa onde sua família judia se escondia da perseguição nazista. “Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador.” Clarice Lispector, umas das escritoras mais aclamadas da literatura brasileira. O uso de “sufocado” e “sufocador” na fala das duas mulheres não é mera coincidência. Essa forma de lidar com a dureza do real, embora não seja da ordem da barbárie como o Nazismo, ou questões existenciais assinaladas nos textos de Clarice, a escrita é antes de tudo uma terapia anti sufocamento. A escrita é um lugar de cuidado, um respiro, onde as dores se transmutam em poemas e rascunhos se convertem em cartas de amor. É farol que ilumina pensamentos confusos, transformando-os em ideias inovadoras e insights que se materializam em resolução de conflitos, autoconhecimento e criatividade.
2 respostas
Excelente entrevista. Lembrei das minhas aulas de Literatura na UEMA e dos estimados professores: Gilberto e Kátia. Para você Cristiane eu tiro o chapéu, pela sua inteligência, resiliência ,responsabilidade e pela excelente leitora e escritora que sempre foi.
Que honra um comentário seu em um dos meus textos.
Muito obrigada, professora Sirlene.
Jamais esquecerei suas aulas.
A você rendo minha consideração e respeito sempre.
E muita gratidão por me inspirar a ser melhor professora que eu posso ser.
Um beijo em seu coração.