Por: Helena Frenzel – romanista, letripulista, professora e contadora de causos.
Outro dia, me achava ali por acolá lendo um livro de fábulas quando topei com esta história e pensei em contá-la neste espaço, mas não sei bem o motivo. Vai ver ando com saudade de sentar numa roda de amigos e ficar ouvindo e contando causos até não poder mais, até secar a fonte de nossos assuntos e risos.
Contam que num interior desses aí, escondidos pelo mato adentro do mundo, vivia um homem que sempre viajava léguas para ir a um povoado comprar e vender mercadorias. Logicamente ele vivia num lugar que veículo de roda não alcançava, só se chegava a pé ou em montaria. Tem uns lugares desses lá pelas montanhas, também pelas selvas tropicais, nesses rincões que só Deus encontra, e uns poucos seres humanos também, de vez em quando. Pois bem, da última vez que o homem foi ao mercado, tendo vendido tudo o que levara, colocou mantimentos e dinheiro num saco, prendeu o dito cujo na sela do cavalo e pôs-se a caminho de casa. A carga estava bem pesada.
Antes de entrar na zona de mato fechado, no entanto, onde não tinha viv’alma que pudesse lhe acudir em caso de necessidade, o cabra parou numa quitanda pra fazer uma refeição e dar um trato no cavalo. O rapaz que cuidava dos bichos se aproximou e disse: “Sinhô, tá fartando um prego nu’a das ferradura do seu cavalo. Se o sinhô quiser, eu arrumo“. E o muquirana respondeu: “Deixe pra lá! O tempo que eu inda tenho de viaje no lombo desse pangaré dá de sobra pra segurar os outros pregos, e ande, ande que eu tô é vexado! Ora se eu vou gastar dinheiro com prego, só se eu fosse besta, sô!”. E foi lá comer o seu pirão e tomar a sua tiquira, pois que a viagem seria comprida.
Terminada a comida, lá vem o rapaz de novo: “Sinhô, no seu cavalo tá fartando u’a ferradura, se o sinhô quiser eu arrumo“. Ao que o sujeito respondeu, agora brabo: “Deixe estar que eu tô é cum pressa, esse cavalo é bom e guenta tudo. Onde já se viu gastar dinheiro com ferradura? Em casa eu mesmo troco a que tá faltando, que esperteza não me falta!”. Daí pagou a conta, montou no cavalo e saiu resmungando (para si mesmo) que essa gente do povoado arranja qualquer desculpa pra ganhar dinheiro fácil, e que do jeito que ele ia apressado, lá pelas tantas já estaria em casa deitado em sua rede, pitando seu cigarro.
Não demorou nem uma hora no caminho e o cavalo se danou a mancar, depois tropeçou, tropeçou de novo e trupicou mais u’a vez até que caiu e quebrou u’a perna. O esperto, não tendo outro jeito, deixou o cavalo caído por lá mesmo, pôs a carga nas costas e foi caminhando até em casa, bufando que nem boi brabo durante todo o trajeto, dizendo que a culpa era do prego!
Daí que eu li essa fábula e fiquei pensando numa ruma de coisas, principalmente nas pessoas e suas atitudes, porque o caminho mais fácil é sempre jogar a culpa nas coisas mais absurdas, num é mermo? Mas pode ficar de boa que não pretendo nem vou discutir a moral dessa história, apenas fico pensando no velho deitado que resmunga: “Quanto mais pressa, vagar” ou “Apressado come cru” ou “Quem avisa amigo é” ou “Tem barato que sai caro” ou “Se amarra o burro é no rabo do dono”, que no caso aqui é um cavalo, abandonado no mei-do-mato com u’a perna quebrada, coisa que é bem típica aliás dos seres humanos: usa e depois abandona.
E fiquei também pensando que, diante de tantas coisas sobre as quais escrever, opto por oralidades porque são esses registros que quero preservar: esse jeito único que tem um povo de contar suas histórias, tudo ali, regado à musicalidade da fala local, ao cheiro do café coado no pano e no ritmo das conversas na calçada da frente de casa. Se você ainda tem desses privilégios de poder ter uma roda para contar causos, é bom valorizar. Na Europa, por exemplo, cada lugarzinho dá valor a seus causos e falares, ninguém quer abrir mão dos seus, e é por isso que nos jornais locais se vê colunas trazendo histórias que reproduzem o falar (ou os falares) da região.
Só fiquei com pena mesmo foi do cavalo, meu povo, que no final das contas foi o único que se lascou. O que é muito coerente aliás com a realidade, dado que o cavalo (nas fábulas) geralmente simboliza o povo trabalhador, que só serve para sustentar as mordomias dos de cima.
Mas, e o prego, hein? Bem, no Brasil de 2023, em pleno mês de maio que segue abril, mês da mentira, “o prego” virou “o hacker”, uma sombra que anda por aí pela internet falsificando as coisas mais improváveis, tipo carteiras de vacinação de uns “espertos” que dizem nunca terem se vacinado… tsc, tsc, tsc. Sim, mas este conto furado da carteira falsificada, junto a tantos outros, como o misterioso conto das joias árabes, farão parte do livro Contos e Mitos da Terra Plana, que breve estará disponível em vários sites. Duvida? Pode aguardar.