(Por Edmilson Sanches – Administrador, historiador, comunicador, escritor, palestrante, consultor, autor da Enciclopédia de Imperatriz)
Em dezembro de 1817, dois cientistas alemães iniciaram a partir do Rio de Janeiro uma viagem pelo Brasil (aliás, “Viagem pelo Brasil 1817-1820” é o nome da obra onde detalharam essa verdadeira odisseia, publicada originalmente em três volumes, de 1823 a 1831).
Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix já haviam sido designados, por ordem real, para realizar pesquisas na América do Sul. Era 1815 e questões políticas e econômicas impediram a viagem da dupla de cientistas. No começo de 1817, nova ordem real os leva a integrarem-se à comitiva da arquiduquesa da Áustria, Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena, que vinha para o Brasil, pois contratara casamento com Dom Pedro de Alcântara, futuro imperador Dom Pedro 1º.
Em 15 de julho de 1817 os dois desembarcaram no Brasil, na baía da Guanabara. Martius era botânico e também médico e antropólogo, tendo se tornado um dos mais importantes pesquisadores alemães que estudaram o Brasil. Spix era zoólogo. A dupla embrenhou-se Brasil adentro. De 1817 a 1820 percorreram mais de 10 mil quilômetros (4.000 de norte a sul e 6.500 de leste a oeste) em território dos atuais estados Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Pará e Amazonas.
É imensa a contribuição de Spix e Martius aos estudos naturais e culturais do Brasil. Eles coletaram dezenas de milhares de amostras de plantas, animais, minerais, além de artefatos e anotações e desenhos, registros sobre economia e etnias e também sobre o cotidiano dos lugares que visitaram. Com letras, números e imagens, além dos espécimens utilizados em estudos, os dois alemães fizeram uma radiografia da riqueza e diversidade natural e cultural do Brasil pré-Independência.
Os três volumes de “Viagem pelo Brasil” são divididos em nove livros que totalizam 36 capítulos. É no segundo volume, livro sétimo, que se encontra o capítulo 3 intitulado “Viagem de Oeiras, passando pela Vila de Caxias, a São Luís, capital do Maranhão”. A descrição do capítulo pontua: “Índios de São Gonçalo do Amarante. Adoece o grupo de viajantes. A Vila de Caxias. Cultivo e comércio de algodão. Índios das tribos dos aponejicrãs e macamecrãs. Descrição das demais tribos existentes na província do Maranhão. Viagem pelo Rio Itapicuru, até a costa do mar, e passagem à Ilha do Maranhão, até à capital da província.”
O relato da chegada de Spix e Martius a Caxias e a descrição da cidade, com extensas anotações sobre plantio, produção e comércio de algodão e sobre índios, ocupam mais de nove páginas, cada uma destas com 48 linhas de 80 caracteres cada, em média. Destaque-se que no capítulo 2 do segundo volume já se antecipa um registro que mostra a importância econômica de Caxias naqueles idos de 1819. Comentando sobre a inferioridade de Oeiras, então capital do Piauí, em relação a Parnaíba, escrevem os pesquisadores alemães:
“[…] Acontece que a própria Oeiras nem mesmo pode ser o empório para os produtos do interior da província; de fato, as outras vilas, Pernaguá, Jerumenha, Valença, Campo Maior, Marvão, mandam as suas mercadorias quer diretamente ao mar, para a Bahia, Parnaíba e Maranhão, quer para a VILA DE ALDEIAS ALTAS, que, situada no navegável Itapicuru, é o mais apropriado empório para o comércio do Maranhão. […]” Como se sabe, essa “Vila de Aldeias Altas” é Caxias.
Cerca de 18 meses depois da saída da expedição do Rio de Janeiro, em dezembro de 1817, Spix e Martius pisaram em terras caxienses, provavelmente em 16 de maio de 1819. A caminhada por matas virgens e a desorientação em terrenos desconhecidos, além das doenças e a extrema debilitação física, atrasaram a chegada à zona urbana (vila) de Caxias. Talvez Martius, o primeiro a chegar à vila, só tenha chegado após o dia 20 ou na última semana de maio de 1819, já que dia 16 desse mês e em pelo menos nos dois dias seguintes, segundo seu relato, ficou muito doente, febril, a custo indo a cavalo de uma fazenda a outra (Buriti, São Pedro, Todos os santos…). Depois dele, foi a vez de Spix adoecer gravemente, com chuva torrencial sobre os dois. Repetindo: Martius adoecera primeiro e recebeu cuidados de Spix; depois, este adoeceu violentamente e Martius, sob tempestade, improvisou medicação para o amigo. Martius teve de deixar Spix doente no meio do caminho enquanto ele, também doente e fraco, ia a cavalo rumo a Caxias, onde pretendia socorrer-se e mandar recolher Spix.
Cotejando datas e relatos, pode-se afirmar como praticamente certo: Martius e Spix devem ter permanecido pelo menos uma e, no máximo, duas semanas na vila de Caxias.
Spix morreu em 14 de março de 1826, aos 45 anos; assim, os dois últimos volumes da “Viagem”, de 1828 e 1831, foram escritos por Martius, que, devidamente autorizado, utilizou as anotações de seu companheiro de expedição científica. Martius morreu em 13 de dezembro de 1868, com 74 anos.
A seguir, trechos do relato de Martius, cobrindo do momento em que ele, tentando chegar a Caxias, se perdeu na viagem e foi localizado até a viagem dos dois cientistas e amigos, que tomaram em Caxias uma barcaça que os levou a São Luís.
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“[…] Estávamos distantes nove léguas da VILA DE CAXIAS; mas como não havia escravos para o transporte do doente grave, faltavam-nos meios para lá chegar. Não restava, entretanto, outro alvitre, senão seguir eu mesmo na frente, para buscar socorro. Com o coração pesado, prometi ao amigo [Spix] voltar logo; fiz-me içar a cavalo, duplamente enfraquecido pela canseira da véspera, e toquei apressadamente o animal no caminho solitário. Sob os raios do sol tropical, consumido pelo calor interno da febre, passei primeiro por extensos palmeirais, que agora estavam cheios de água, depois por diversas séries de outeiros matagosos, condenado, como Tântalo, a sofrer o tormento da sede, pois que, se me apeasse, receava não poder tornar a montar. Anoitecia, sem que eu tivesse alcançado o termo da viagem; e, quando subia uma íngreme colina, e os últimos raios do sol poente iluminavam uma região de mata, perdi o estreito trilho no meio do capim alto. Em breve, escureceu de todo; e achei-me só, doente e perdido no sertão. Na profunda apatia resultante do abalo dos últimos dias, procurava um lugar numa árvore baixa para apear-me, quando ouvi alguém assobiar, e ao meu chamado apareceu, agitando um archote, um negro que vinha de CAXIAS, pelo mato, àquela hora insólita, trazendo remédios. Esse guia, tão felizmente encontrado, pôs-me de novo na estrada, e, afinal, avistei as luzes da vila [de Caxias]. Apeei-me à porta do juiz de fora, e pude ainda entregar ao digno Sr. Luís de Oliveira Figueiredo e Almeida as nossas cartas de recomendação; mas, nesse momento, pagou o corpo o tributo dos esforços dos últimos dias, e caí sem sentidos no chão. Voltando a mim, achei-me na cama, em um quarto bem mobiliado e diante de mim, a tratar-me, um homem que me falou em inglês. Era um médico português, formado em Edimburgo [capital da Escócia, no Reino Unido], e que, pouco antes, se havia estabelecido em CAXIAS. Graças a seus cuidados, não tardei a recuperar o bem-estar, e tive a felicidade, na manhã seguinte, de ver aqui o meu amigo doente [Spix], em estado sofrível, transportado pelos negros, que haviam sido mandados a buscá-lo.
“Se tivemos, no decorrer dessa narração de viagem, não raro oportunidade de descrever momentos recompensadores e deliciosos em cenas, como as que acabo de contar, poderá o leitor ver o lado de sombra do quadro. Entretanto, o viajante que passa por tais dissabores no cumprimento do dever, também deles forma não só belo fundo de cenário para as recordações na velhice, como também mais alta confiança n’Aquele, cujo imperscrutável plano logo dispõe o socorro ao lado do perigo. A nossa saúde dia a dia foi melhorando em CAXIAS, graças aos cuidados que nos dispensavam o médico e o novo juiz de fora, Sr. Francisco Gonçalo Martins; este, embora tivesse partido da Bahia, por mar, muito depois de nós, já o encontramos aqui, para assumir a função de juiz, que em todo o Brasil é em geral exercida durante três anos, num mesmo lugar, pela mesma pessoa.
“CAXIAS (Vila desde 1812), antigamente Arraial das Aldeias Altas, é uma das mais florescentes vilas do interior do Brasil. Monta a 30.000 o número de habitantes do seu termo. Deve a sua prosperidade à cultura do algodão, explorada desde uns vinte e tantos anos, com afinco, em seu interior, e fomentada em toda a província apela Companhia de Comércio do Maranhão e Grão-Pará, assim como à atividade comercial de seus habitantes, entre os quais se encontram muitos europeus. Mais da metade de todo o algodão produzido na província é despachado daqui para a capital, e, nos últimos anos, o número de fardos embarcados em CAXIAS, cada um do peso de 5 a 6 arrobas, subiu a 25.000 e até 30.000, que, avaliando baixo, mesmo no interior, vale uns 1.650.000 ou 1.980.000 florins. Entre as qualidades de algodão do Brasil, só a de Pernambuco, na qual são incluídas as de Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, é superior à do Maranhão. […]
“[…] Nos primeiros dias de nossa estada, fomos certa vez, à tarde, atraídos à janela por berreiros na rua, onde se oferecia o singular espetáculo do bando de uns 50 índios, que passavam em completa nudez e incultura primitiva. […] Semelhantes passeatas não são raras agora, e constituem um dos meios de que se servem os colonos para conservar em pé de amizade esses antigos donos da terra. Somente nos últimos decênios se conseguiu estabelecer pacífico tráfego entre os índios livres da província do Maranhão e os colonos; e, como a prudência manda tudo fazer para extirpar das numerosas tribos os sentimentos hostis hereditários, assim se esforçam os habitantes de CAXIAS em recebê-los bem e cumulá-los de fartas provisões de farinha, cachaça, fumo e tecidos de algodão de variegadas cores. […] Francisco de Paula Ribeiro, num tratado manuscrito “Sobre o gentilismo do Maranhão”, e Luís de Oliveira Figueiredo e Almeida, juiz de fora de CAXIAS, de 1812 a 1819, e que de novo encontramos na capital, relataram-nos, de viva voz, o seguinte sobre os índios dessa extensa província. […]”.
“[…] Comunica-se CAXIAS com a capital do Maranhão apenas pelo Rio Itapicuru. Os caminhos por terra, que passam ao longo dele, de uma fazenda para outra, só servem para cavaleiros e são apenas transitáveis para os cargueiros, pois só a custo se podem manter abertos no meio dos palmeirais pantanosos e cerrados e são, além disso, expostos às inundações do rio. Chegávamos, aqui, portanto, ao termo da nossa viagem por terra e nos alegrávamos com a ideia de poder agora aproveitar de bem aparelhadas canoas, com mais comodidade, como exigia a nossa saúde abalada, para a parte restante da nossa empresa. As nossas mulas cargueiras foram vendidas aos comboieiros, que, de quando em quando, empreendem com numerosas tropas a longa viagem de 300 léguas por terra, passando por Oeiras a São Félix e Natividade, a fim de levarem a essa remota parte da província de Goiás os produtos europeus. O Rio Itapicuru, até cujas nascentes nenhum brasileiro ainda se teria aventurado, corre a sudoeste de CAXIAS, quase sempre paralelo ao seu vizinho do sul, o Rio Parnaíba, na direção do nordeste; perto dessa vila, porém, ele ruma para noroeste e, fazendo muitas curvas, lança-se no mar. De CAXIAS para cima, só é navegável em canoas muito pequenas, devido à pouca profundidade, como pelas frequentes quedas, até a região da freguesia dos Pastos Bons ou de São Bento das Balsas. Rio abaixo, porém, admite embarcações grandes e pesadamente carregadas, tendo, embora fora do tempo da cheia, em quase todo o percurso, 60 a 80 pés de largura. Estando justamente no ponto de partir uma barcaça para o Maranhão, oferecendo segura e agradável viagem, abreviamos a demora em CAXIAS, e, na tarde de 3 de junho, armamos, por cima de um carregamento de 350 fardos de algodão, a nossa tenda, 20 pés acima do rio. […] Quanto mais nos afastávamos de CAXIAS, mais numerosas eram as fazendas, cujo extenso casario indicava a opulência de seus donos. […]”.