Eu disse a vocês que, este ano, falaria aqui mais sobre fábulas. Não porque assim tenha planejado, mas porque certas histórias não me descem mais goela abaixo, e eu não saberia contá-las em sua forma original, sem nada questionar ou adaptar.
Aqui me refiro à história da princesa e da ervilha, fábula do dinamarquês Christian Andersen, autor (ou compilador) de fábulas tais como A Pequena Sereia, A Rainha do Gelo e O Patinho Feio e tantas outras. Digo “compilador” porque muitas dessas fábulas foram coletadas da cultura popular e compiladas em livros, então é difícil comprovar cem por cento a autoria.
A fábula A Princesa e a Ervilha, em sua versão supostamente “original” conta de um príncipe que percorre o mundo inteiro procurando uma princesa “de verdade” com quem pudesse se casar. Como já era esperado, ele nada encontra e volta para casa frustrado. Num dia de tempestade, eis que aparece aos portões do palácio uma moça toda desarrumada. Claro, né? Não sei quem conseguiria permanecer impecável debaixo de uma chuva de “trivuada”, que era como minha tia costumava chamar esse tipo de temporal. A moça disse que era uma princesa, mas ninguém acreditou. A rainha, encarnando a típica figura da sogra, teve a ideia de testar se a moça estava dizendo a verdade. Colocou uma ervilha no estrado de uma cama, mandou jogarem por cima vinte colchões e, por cima destes, vinte cobertores bem fofos. Ao final, chamou a moça e ordenou que ela dormisse lá em cima. No dia seguinte, a rainha perguntou como a moça havia dormido, e ao ouvi-la dizer que havia tido uma noite horrível, porque deveria haver algum objeto muito incômodo naquela cama, a rainha se convenceu que a moça era uma princesa “de verdade”, por conta de sua incrível “sensibilidade”. Como sempre, a princesa se casou com o príncipe e se os dois ainda vivem, são felizes e comem perdizes, que é como se costuma dizer no final das fábulas em espanhol.
A fábula continua sendo um gênero muito amado aqui na Alemanha. Tanto que aos domingos é quase uma tradição que exibam várias delas na televisão. Dia desses, assisti a uma versão bem mais interessante que a original para a história da princesa e da ervilha. Nessa versão, o rei, já bem velhinho, tem uma irmã metida a besta, cavilosa e cheia de mordomias, que ameaça tomar o trono caso o filho do rei não se case a tempo. E para impedir que isso aconteça, o rei mandou vir uma princesa de um reino distante. A caminho do castelo, já quase nos portões, a princesa se desespera e dá um jeito de fugir da carruagem ao descobrir que, na verdade, ali estava sendo levada para se casar com alguém que ela nunca havia visto. Para não ser encontrada, ela se disfarça de camponesa e arruma trabalho num orfanato.
Enquanto isso, no castelo, o príncipe busca uma forma de dizer ao rei que não quer se casar com a tal princesa de encomenda, e muito se alegra ao saber que ela havia desaparecido. Sempre que podia, o príncipe costumava escapar do castelo para aprender coisas úteis com os artesãos do reino. Ele não suportava as mordomias da tia, que gastava muito e nunca estava satisfeita com nada. Num dia, ele e seu mestre-artesão foram ao orfanato consertar o telhado e lá, como já era esperado, o príncipe se apaixonou pela bela camponesa que cuidava das crianças. Ele pediu a ela uma ervilha e ela disse que lhe daria uma como recompensa quando o telhado estivesse pronto. A moça não sabia que aquele aprendiz de artesão era o príncipe.
O rapaz estava pronto para abandonar o castelo e se casar com a camponesa, quando o rei teve um ataque ao ver que a irmã tomara o trono, já que o herdeiro não havia se casado até aquele momento com uma princesa “ de verdade”. Muito triste, o jovem mancebo foi até o orfanato para dizer à sua amada que ele teria que encontrar a princesa perdida e se casar com ela, e assim impedir que a tia permanecesse no trono. Pediu que ela o perdoasse porque, para o bem do reino, ele teria que fazer aquele sacrifício.
A moça então foi até o castelo numa noite de muita chuva e disse que era a princesa que todos estavam procurando, e que tinha uma ervilha para dar ao príncipe. A tia, claro, fez troça e exigiu que ela provasse que era uma princesa “de verdade”. Daí mandou preparar a cama com a ervilha, os vinte colchões e as vinte mantas, seguríssima de que a moça não passaria naquele teste. Durante a noite, porém, a moça e o príncipe passaram horas deitados no chão conversando, separados por uma porta, e no dia seguinte, antes que a tia entrasse no quarto, a princesa acordou no chão e subiu para o topo da cama. Quando perguntaram como ela havia passado a noite, claro que ela respondeu que não havia dormido nada, e que lhe doía todo o corpo. Daí a tia teve que admitir que a moça passara no famigerado teste e teve que aceitar que ela e o príncipe se casassem. Ao final, a tia metida a fina foi convidada a deixar o castelo e foi obrigada a levar os vinte colchões e as vinte mantas para um lugar onde realmente eram necessários: o orfanato.
Se o príncipe e a princesa foram felizes e comeram perdizes, disso eu não sei, só sei que se for para contar histórias, que sejam versões que nos ajudem a derrubar mitos e que façam mais sentido para os nossos dias, abarrotados de gente que precisa de agasalho e sequer tem, no prato, um punhado de ervilhas para comer.