Em homenagem ao Dia da Consciência Negra (20 de novembro), o site Região Tocantina republica a entrevista feita no dia 07 de setembro de 2020 com a professora doutora em Educação, Herli de Sousa Carvalho, na ocasião recém-eleita presidente do Centro de Cultura Negra Negro Cosme. Vale a pena ler!
No dia 25 de maio de 2020 (Dia da África), a professora doutora Herli de Sousa Carvalho, coordenadora do Curso de Pedagogia da Ufma de Imperatriz, foi eleita presidenta do Centro de Cultura Negra Negro Cosme para o biênio 2020-2022. O CCN-NC, como é conhecido, foi fundado em 2002 e, em 18 anos de atividade, vem buscando enfrentar o racismo em Imperatriz, principalmente, com atividades no campo da educação e da cultura. Nesta entrevista, Herli Carvalho faz um balanço das ações do grupo, ao mesmo tempo em que reflete sobre a inexistência de ações públicas locais de combate ao racismo.
Região Tocantina – Qual é a história do CCN Negro Cosme?
Herli Carvalho – O Centro de Cultura Negra – Negro Cosme (CCN-NC) foi fundado no dia 27 de março de 2002, depois de muitas reuniões de discussões (no prédio da Academia de Letras de Imperatriz), em que construímos (sou membro fundadora) o Estatuto, bem como tivemos a sessão solene de Posse da Diretoria (tendo Mariano Dias como o primeiro Presidente), o planejamento da Semana Municipal de Consciência Negra e sua realização junto à comunidade de Imperatriz. Nunca tivemos uma sede, mas a generosa contribuição de parceiros. Não fugimos à luta, durante esses anos de peleja contra o racismo, a partir da realização de inúmeras metas com atividades e projetos com ações ligadas para a formação docente e fomentando a presença/envolvimento de discentes na implementação da Lei 10.639/2003 que assegura a aprendizagem da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a exemplo, nossa efetiva participação no Salão do Livro de Imperatriz (SALIMP).
Região Tocantina – Como a senhora vê a situação do racismo hoje?
Herli Carvalho – O racismo sempre existiu em todo grau de crueldade capaz de deixar marcas de sofrimentos emocionais, físicos e psíquicos, desde a infância até a maturidade nas pessoas que são vítimas da inferiorização causada por tais práticas de preconceitos e discriminações em estereótipos visíveis. A população negra no Brasil sempre esteve às margens do que seria dignidade e direitos humanos, apesar de ter uma história ancestral de honra e respeito às tradições advindas de África, fato que assegura toda a força e energia vital que sustenta a luta diária por resistência. Compreendemos que precisamos nos posicionar urgentemente contra todo e qualquer ato de racismo, a fim de superar discursos de ódio e superioridade que desumanizam e provocam as desigualdades raciais e sociais, bem como possibilitar uma luta de empoderamento e consciência identitária aos nossos pares, e a nós igualmente. Do ponto de vista cultural, entendermos que é nas diferenças que nos constituímos seres de respeito e, principalmente, na valorização das vivências de valores civilizatórios centrados na musicalidade, ludicidade, religiosidade, corporeidade, energia vital, comunitarismo/cooperativismo, circularidade, memória, oralidade e ancestralidade, como extensão de uma consciência negra.
Região Tocantina – Na sua opinião, por que ainda hoje, em pleno século XXI, existe racismo no mundo?
Herli Carvalho – O fato é que ao povo negro foi negado o direito de liberdade e de convivência com os seus pares, quando chegaram no Brasil como escravizados; sempre foi silenciado por causa das línguas/dos dialetos que falavam em suas nações e aqui se misturam numa incompreensão da linguagem; invisibilizados nas senzalas, nas cozinhas, nos portos, nos engenhos, na negação de si para dar superioridade aos “donxs”; negado na sua existência e contribuições na formação de cidades, por exemplo; afastados dos bens de acesso pela condição de escravizados ao serem privados de uma vida digna. As ideologias racistas favorecem o fortalecimento dos dominantes, que são minoria e detêm as riquezas geradas pelo capitalismo, constroem barreiras de não proximidade geradas pela “superioridade” e, consequentemente, pobres no fazimento de ações de alteridade consigo e com as demais pessoas de suas relações.
Região Tocantina – Como a senhora avalia as políticas de combate ao racismo que existem na região tocantina?
Herli Carvalho – As políticas públicas de combate ao racismo na região são inexistentes. Infelizmente. Vemos apenas pessoas/entidades de boa vontade querendo fazer acontecer, lutando para que as ações afirmativas sejam uma realidade. Quiçá em tempo médio, teremos na agenda da política na região a pauta do povo negro em garantia de direitos já conquistados e por vir.
Região Tocantina – Quais as ações estão planejadas para a sua gestão à frente do CCN Negro Cosme?
Herli Carvalho – No biênio (2020-2022), alugamos uma pequena casa (almejamos conseguir um lugar específico), e, em forma de mutirões, nos organizamos num espaço de guarda, lugar de pesquisa e acolhida ao povo negro. Estamos organizando livros com as produções acadêmicas de militantes através de nossa Editora Balaiada Escritas Negras como forma de disseminar os conhecimentos produzidos nas temáticas que compõem a nossa causa de combate ao racismo. A partir da primeira Reunião Ordinária presidida pela Chapa Axé e Resistência, estamos realizando Formação para fortalecimento nas discussões que nos dizem respeito, e na discussão da Pauta necessária para efetivação do Plano de Ação elaborado. Nos encontramos no último sábado de cada mês, das 15h às 18h. Acompanhamos o planejamento e realização das metas e ações de cada Secretaria e demais órgãos que compõem o CCN-NC. Fazemos parte de Conselhos municipais e estaduais de mulheres, de educação, do CONSEA, da Igualdade Racial e, assim, nos ligamos com outras pessoas/entidades para resistirmos na luta diária por nosso povo. Compartilha(re)mos de Projetos educativos, culturais e religiosos em instituições educacionais, culturais e religiosas da região. Acompanhamos e apoiamos jovens negrxs que buscam o processo de pertencimento identitário étnico racial.
Região Tocantina – Como educadora, como a senhora avalia o papel da educação na extinção do racismo?
Herli Carvalho – Queremos ponderar que a Educação formal tem uma função preponderante, mas sozinha com seus sujeitos não damos conta de extinguir o racismo porque foi historicamente construído através de ideologias disseminadas por grupos fortemente dominantes. Muito embora tenhamos como aliada a Educação que acontece nos “lugares aprendentes” como quilombos, aldeias indígenas, tendas e acampamentos ciganos, nos terreiros de matriz africana, nas manifestações culturais e religiosas… Sabemos que os diversos tipos de educações coexistem e contribuem ricamente com o processo de conhecimento da história do povo negro. Portanto, a nosso ver, teremos muitos caminhos a serem trilhados para que a diminuição do racismo seja uma realidade, e será fruto com certeza do respeito individual e coletivo aos seres humanos que legam dignidade ancestral. Precisamos nos unir num esforço incomum com outros coletivos ou setores da sociedade com a consciência planetária e cósmica de que somos componentes de um todo e fazermos a nossa parte.
Região Tocantina – É possível ter esperança para o fim do racismo?
Herli Carvalho – Temos conquistas de Esperança, do verbo Esperançar, como a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024) da qual fazem parte vários países no enfrentamento do racismo de forma coletiva. Apresentamos a luta pela conquista das Cotas na Educação Superior, que é outro viés de Esperança pelo fato de estarmos vivendo um processo em que muitxs jovens concorrem por vagas a partir da autodeclaração racial. Em tempos de pandemia, observamos que as manifestações de ódio presente em muitas sociedades estão vindo à tona e divulgadas nas mídias mundiais, todavia, igualmente temos as possibilidades de participação em lives, webinários, blogs, canais de youtube, cursos, dentre outros mecanismos, que através de palestras, falas, diálogos, discussões, anúncios e denúncias divulgamos conhecimentos acerca da população negra, entendendo que é uma forma de combate ao racismo individual, estrutural e institucional. Outra conquista se dá a partir das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, em que estamos trabalhando incessantemente na produção de materiais como livros, jogos, cds, dvds, bem como formação docente e a implementação das leis nas instituições educacionais. Igualmente, queremos lembrar que existem muitas conquistas que encontram-se expressas em pesquisas acadêmicas/científicas com a temática em forma de teses, dissertações, monografias, artigos, dossiês, publicadas em revistas, livros, e-books e até programas televisivos estão dando visibilidade para as questões de negrxs. Enfim, é necessário relembrar que um número expressivo de entidades de movimentos negros, indígenas, quilombolas, de ciganxs, quebradeiras de coco, ribeirinhxs, e outros grupos discriminados estão fortalecendo práticas de ações afirmativas através de grupos, de coletivos, do afro empreendedorismo, da transição capilar, da inserção política, da riqueza cultural manifesta nas comunidades tradicionais, na construção de Estatutos de Igualdade Racial, na participação em Conselhos de Igualdade Racial, dentre outras possibilidades. Por fim, ao entender que as africanidades se traduzem no campo das memórias da cultura negra, ratificamos nosso desejo de que sigamos construindo uma consciência negra com Esperança de que as pessoas que virão terão melhores perspectivas de equidade entre os pares.