domingo, 1 de dezembro de 2024

O conceito de liberdade no pensamento de Paulo Freire (1964-1970)

Publicado em 5 de janeiro de 2022, às 18:55
Imagem: Internet

No prefácio da primeira edição de Pedagogia do oprimido, o professor Ernani Maria Fiori afirma que Paulo Freire é um “pensador comprometido com a vida”, pois não pensa apenas ideias, mas a própria existência. Para Fiori, a pedagogia freireana se funda em um “esforço totalizador da ‘práxis’ humana” como uma prática da liberdade que “só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica”.[1]

Pedagogia do oprimido é o ponto culminante das quatro obras mais importantes da primeira fase do pensamento pedagógico de Paulo Freire. Estas obras foram gestadas e publicadas entre 1964 e 1970, período em que esteve exilado no Chile. Concebidas a partir da base epistemológica do materialismo histórico-dialético, estas obras – especialmente Pedagogia do oprimido – tornaram Paulo Freire reconhecido mundialmente como um dos mais notáveis teóricos da educação do século XX, sendo o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos da área de humanas em todo o mundo.

A primeira destas obras é Educação como prática da liberdade, publicada em 1967, na qual Paulo Freire faz uma revisão de sua tese de doutorado defendida em 1959 intitulada Educação e atualidade brasileira. Nessa obra ele apresenta a ideia de educação como um meio para a conscientização e a liberdade do homem. Quanto a isso, afirma que “o processo de educação não se completa na etapa de desvelamento de uma realidade, mas só com a prática da transformação dessa realidade”,[2] ou seja, educar não é simplesmente elucidar os problemas sociais, mas, sobretudo, procurar formas de resolvê-los. Segundo Paulo Freire, “não há conscientização sem desvelamento da realidade objetiva, enquanto objeto de conhecimento dos sujeitos envolvidos em seu processo, tal desvelamento, mesmo que dele decorra uma nova percepção da realidade desnudando-se, não basta ainda para autenticar a conscientização. Assim como o ciclo gnoseológico não termina na etapa de aquisição do conhecimento existente, pois que se prolonga até a fase da criação do novo conhecimento, a conscientização não pode parar na etapa do desvelamento da realidade. A sua autenticação se dá quando a prática do desvelamento da realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação da realidade”.[3]   

A segunda obra, Ação cultural para a liberdade, publicada em 1968, dá continuidade às teses apresentadas na obra anterior, mas agora sob a perspectiva de uma proposta pedagógica capaz de possibilitar ao alfabetizando compreender o ato de ler a partir de seu contexto social. Essa proposta tem como metodologia a prática dialógica como meio para conscientizar e gerar reflexões acerca da realidade. Esta metodologia será aprimorada nas obras subsequentes e se tornará a marca da educação problematizadora freireana. Uma vez conscientizados de seus problemas sociais, os sujeitos passarão à uma ação cultural que os conduzirá à liberdade. Na ação cultural eles serão criadores de cultura na medida em que tomarem um contato mais crítico com a realidade e refletirem sobre suas ações no sentido de transformá-la. Trata-se de um autêntico ato de conhecimento, no qual a força real que determina a estrutura da sociedade se apresenta aos sujeitos cognoscentes como um objeto passível de conhecimento. É através desta busca permanente pelo conhecimento que eles se tornam livres. Portanto, a liberdade deve ser entendida como uma conquista e não como algo gratuito, pois decorre de uma luta que empreendem para obter aquilo que não possuem, já que passam a se reconhecer como seres inconclusos a partir do momento em que refletem sobre si mesmos e seus papeis sociais. Nesse sentido, a liberdade não é um mero ideal, mas uma condição indispensável para que, por meio de suas ações culturais, se coloquem constantemente a caminho de sua humanização.

No ano seguinte, em 1969, Paulo Freire publica Extensão ou comunicação?, livro que traz uma reflexão sobre a questão da comunicação no meio rural entre agrônomos, com seus saberes acadêmicos, e camponeses, cujo conhecimento advém da lida com a terra. Neste livro Paulo Freire discute os conceitos de invasão cultural, extensão e comunicação, revistos em seu sentido linguístico e filosófico no contexto da reforma agrária chilena. De acordo com Paulo Freire, invasão cultural diz respeito à “penetração em uma sociedade de uma cultura estranha que a invade e lhe impõe sua maneira de ser e de ver o mundo. É a penetração dos invasores no contexto dos invadidos, sem respeito à potencialidade do ser, impondo-lhes a sua visão de mundo, freiando a sua criatividade e inibindo a expansão dos invadidos”.[4] Trata-se de uma forma hierárquica de educação com a qual Paulo Freire não concorda, pois para ele “educação é comunicação, é a co-participação dos sujeitos no ato de pensar; é diálogo na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”.[5]

Aqui, aparece concepção freireana de práxis que, por sua vez, não dicotomiza teoria e prática. Para afirmar que teorizar é o mesmo que compreender, Paulo Freire vai buscar etimologicamente o sentido do termo “teoria” na língua grega (θεωρία; Theoria), cujo significado é ver, contemplar. Segundo nosso autor, “ao teorizar o sujeito da educação estará contemplando sua cultura e compreendendo e transformando sua realidade”.[6] Ele segue afirmando que “teoria implica uma inserção na realidade, num contato analítico com o existente, para comprová-lo, para vivê-lo e vivê-lo plenamente, praticamente. Neste sentido é que teorizar é contemplar. Não no sentido distorcido que lhe damos, de oposição à realidade”.[7]

Já o conceito de extensão diz respeito ao ato de estender um conhecimento técnico, em lugar de fazer do fato concreto, ao qual se refira o conhecimento, objeto de compreensão mútua dos atores de um processo educativo. O pensamento, o conhecimento e a comunicação não podem se dar em um sujeito isolado, mas em comunidade, pois a “comunicação implica numa reciprocidade que não pode ser rompida”.[8] Nesse sentido, o conceito de comunicação está para um diálogo problematizador sobre a realidade concreta e vivenciada pelos sujeitos, cujas experiências geram uma consciência crítica que os conduz à ação transformadora. Segundo Paulo Freire, a essência da comunicação reside em duas esferas: a reflexão e a ação. Essas dimensões são mediadas pela relação pensamento-linguagem-contexto ou realidade, que só se torna verdadeira quando está ancorada em uma práxis cotidiana que leve à compreensão do processo de formação do pensamento e da linguagem.

Por fim, Pedagogia do oprimido, um texto escrito também no Chile entre 1967 e 1968 e publicado em inglês e espanhol nos Estados Unidos em 1970, foi traduzido posteriormente para mais de 40 idiomas e publicado no Brasil somente em 1974. Neste texto, Paulo Freire propõe uma pedagogia pensada a partir da realidade dos países latino-americanos – mas que se aplica para além destes – segundo a qual todo processo educativo é também político. O diálogo é a essência desse processo e o sentido de toda a ação educativa de igualdade entre educador e educando. Nas palavras de Paulo Freire, trata-se de uma “Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará”.[9] Sob esse ponto de vista, o fenômeno educativo como um todo deve ser concebido a partir de uma perspectiva política, pois somente assim poderá ser desenvolvido como uma práxis libertadora que leve os sujeitos à conscientização e ao desejo de transformar a realidade. Conforme Paulo Freire, “isto exige um pensar constante, que não pode ser negado às massas populares, se o objetivo visado é a libertação”.[10] A práxis, portanto, “é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos”.[11] Pois, “se os homens são seres do quefazer é exatamente porque seu fazer é ação e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E, na razão mesma em que o quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que necessariamente o ilumine. O quefazer é teoria e prática. É reflexão e ação”.[12]

Uma vez efetivada a práxis no processo da educação problematizadora, inicia-se nos sujeitos a conscientização política e a instauração da liberdade. O sentido desta liberdade está para uma “ação consciente”, ou seja, uma ação crítica e transformadora do sujeito histórico sobre o mundo, que só se tornará libertadora mediante o diálogo. Vejamos o que Paulo Freire diz a esse respeito: “O que pretende a ação cultural dialógica, cujas características estamos acabando de analisar, não pode ser o desaparecimento da dialeticidade permanência-mudança (o que seria impossível, pois que tal desaparecimento implicaria no desaparecimento da estrutura social mesma e o desta, no dos homens) mas superar as contradições antagônicas de que resulte a libertação dos homens. Por outro lado, a ação cultural antidialógica o que pretende é mitificar o mundo destas contradições para, assim, evitar ou obstaculizar, tanto quanto possível, a radical transformação da realidade”.[13]

Segundo Paulo Freire, “o que faz que a estrutura seja estrutura social, portanto histórico-cultural, não é a permanência nem a mudança, tomadas absolutizadas, mas a dialetização de ambas”.[14]  Para ele “o que permanece na estrutura social nem é a permanência nem a mudança, mas a ‘duração’ da dialeticidade permanência-mudança”.[15] Portanto, é a dialogicidade que supera a contradição entre a permanência e a mudança, o que vale sobremaneira para a relação entre o educador e o educando, da qual resulta uma nova relação entre as partes: o educador-educando com educando-educador. Promover a superação da concepção “bancaria” da educação é sem dúvida um dos objetivos mais importantes da Pedagogia do oprimido. Sobre a forma bancária de educar Paulo Freire assim se expressa: “Na relação entre educador-educandos os conteúdos são narrados para os educandos sem reflexão sobre o tema exposto. O sujeito é o educador, que está como um narrador, e os educandos são objetos pacientes”.[16] Nessa concepção de educação o saber passa a ser uma espécie de doação daqueles que se consideram sábios para aqueles que eles julgam nada saber. Trata-se da instrumentalização do conhecimento como parte da estratégia da ideologia da opressão, pois como afirma Paulo Freire, é “a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro”.[17]

Portanto, é a educação problematizadora que rompe com os esquemas verticais da educação bancária e realiza-se como prática da liberdade com e para o homem como sujeito histórico e emancipado. O importante da educação libertadora é que “os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros. Porque esta visão da educação parte da convicção de que não pode sequer presentear o seu programa, mas tem de buscá-lo dialogicamente com o povo, é que se inscreve como uma introdução à pedagogia do oprimido, de cuja elaboração deve ele participar”.[18]

Paulo Freire vislumbra uma educação que esteja a serviço da transformação social a partir da conscientização dos oprimidos,tornando-os homens e mulheres livres, bem como uma educação que esclareça nos sujeitos a percepção crítica da realidade para que se reconheçam como seres históricos e transformadores. Para tanto, é preciso que os educadores-educandos promovam a conscientização dos educandos-educadores por meio de situações de conhecimento relacionadas com suas realidades, cuja finalidade última é libertá-los da opressão do Estado. Dessa forma, estarão restaurando sua humanização mediante a superação da maior de todas as contradições da modernidade: aquela que se estabelece entre a dominação e a libertação dos sujeitos.

Estas quatro obras guardam entre si um forte nexo conceitual cujo fio condutor é a noção de liberdade. Paulo Freire as concebeu em um contexto de exílio que lhe permitiu refletir sobre o problema político que anulava mulheres e homens ao retirar-lhes a possibilidade de pensar e agir por eles mesmos. Para resolver tal problema, Paulo Freire propôs uma pedagogia pautada pela ação cultural e por um diálogo problematizador capaz de levar os sujeitos da opressão à liberdade. Ao destinar sua obra à liberdade humana, Paulo Freire fez com que ela ultrapassasse fronteiras e se tornasse conhecida internacionalmente, sendo traduzida, estuda e aplicada em dezenas de países. Após mais de cinco décadas o conjunto dessa obra continua atual, pois o mundo ainda segue sob a mesma lógica dos sistemas opressores, e mulheres e homens ainda seguem desejosos por liberdade apesar de toda a opressão. 


[1] FIORI, Ernani Maria. “Prefácio”. In. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 4.

[2] FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 144.

[3] FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 145.

[4] FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 178.

[5] Ibid., p. 69.

[6] Ibid., p. 93.

[7] Id.

[8] Ibid., p. 66-67.

[9] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 32.

[10] FREIRE. Pedagogia do oprimido, p. 73.

[11] Ibid., p. 40.

[12] Ibid., p. 69.

[13] Ibid., p. 103.

[14] Ibid., p. 104.

[15] Id.

[16] Ibid., p. 67.

[17] Id.

[18] Ibid., p. 68.

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