sexta-feira, 22 de março de 2024

Por que o STF decide tudo?

Publicado em 22 de maio de 2021, às 10:31
Imagem: Freepik

As questões do mundo do Direito nunca são óbvias. O que parece estranho à pessoa que não está acostumada com esse “mundo à parte”. Isso porque o Direito faz germinar até mesmo nas mentes mais céticas a crença na segurança jurídica, afinal, esse é o primeiro objetivo para o qual imaginamos que o Direito deva existir: para nos trazer segurança. Todavia, na realidade, quem adentra no universo das leis, decisões e interpretações das normas esbarra exatamente em um ponto contrário, onde existem confusões, conflitos e verdadeiras guerras de posicionamentos.

 Um dos pontos mais polêmicos hoje no Brasil é acerca do papel do Supremo Tribunal Federal (STF). Temos uma impressão de que o STF está em todo lugar, decidindo sobre tudo um pouco. Ouvimos falar dele no rádio e na TV. Vemos os ministros discursarem em vídeos do Youtube ou nas redes sociais. Até mesmo discordamos ou apoiamos seus posicionamentos sem nem mesmo saber ao certo o que estão falando. Para grande parte da população brasileira, o STF é um grande desconhecido.

É com objetivo de sanar nossa ignorância sobre o STF e entender se de fato ele está decidindo sobre “tudo” que esse texto foi escrito.

A primeira lição que se precisa aprender acerca do Supremo Tribunal Federal é que ele faz parte do Poder Judiciário. Isso não é novidade para muitos. Mas é preciso compreender o que significa isso no contexto do Estado e nas nossas vidas.

O Poder Judiciário faz parte de um dos três poderes que compõe o Estado. O nome separação dos poderes não é um termo muito bom, o mais apropriado seria “separação de funções”. O Estado deve guiar-se pela vontade do povo, isso porque, o povo é aquele que constitui o Estado e para quem ele existe – ele é início e fim. Nas sociedades atuais, partimos da crença política de que a vontade do povo está expressa primeiramente no texto da Constituição Federal, que é a norma central do Estado e da sociedade, por isso a chamamos de norma fundamental (ou Lei Maior).

Para que o Estado dê fiel cumprimento da vontade constitucional – que é a vontade do povo – ele distribui suas tarefas. Assim, a separação dos poderes tem dois objetivos: distribuir as funções do Estado e impedir que estas mesmas funções se concentrem apenas em um Poder. Esse último ponto é muito importante, pois a concentração de poder é sempre prejudicial a democracia. Imaginemos, por exemplo, a possiblidade do Presidente da República poder julgar um parlamentar! Ele não teria limites no exercício do seu mandato e poderia facilmente agir de maneira tirana.

As principais funções do Estado são de elaborar leis (função normativa), organizar recursos para prestar serviços públicos (função administrativa) e aplicar as leis para solucionar os conflitos entre as pessoas (função de julgamento). A função normativa é realizada pelo Poder Legislativo, a função administrativa pelo Poder Executivo e a função de julgamento pelo Poder Judiciário.

Então, sabe-se que o Poder Judiciário soluciona conflitos aplicando as normas editadas pelo Legislativo aos casos. Entretanto, existe um elemento a mais nas decisões do Judiciário. Isso porque, mesmo que de maneira excepcional, em situações especiais, o Legislativo e o Executivo podem exercer função de julgamento. Por exemplo, quando o Senado Federal condena o Presidente por meio do processo de impeachment, ele está julgando. Fica então a pergunta: qual a diferença entre as decisões do Poder Judiciário para as decisões dos outros poderes? A resposta é simples: a definitividade.

O nome Jurisdição, termo que os livros de direito batizam o Poder Judiciário, significa “dizer o direito”, em outras palavras, significa: aquele que dá a última palavra sobre qual o direito em determinada situação de conflito.

Esse fenômeno impacta diretamente nossas vidas, porque todos nós, em algum momento, iremos ter um confronto com alguém por alguma coisa. Seja porque uma loja não entregou os produtos que você queria ou porque alguém bateu no seu carro e não quis pagar o conserto ou vários outros motivos. Quando não resolvemos os conflitos na conversa, buscamos o Judiciário, pois mesmo sem ter consciência, sabemos que caberá a ele dizer qual o direito aplicar a nosso litígio de uma vez por todas.

Pois bem, o Supremo Tribunal Federal é o órgão máximo do Poder Judiciário, então, literalmente, no nosso país, a última palavra sobre o direito quem vai dá é ele. Além disso, cabe ao STF a defesa da Constituição, que como eu disse, é a norma mais importante do país. Indiretamente, o STF tem o dever de proteger a vontade do povo expressa na Constituição. Se o Judiciário “diz o direito”, o STF “diz o direito da Constituição”, por isso, os juristas chamam as decisões ou atividades do Supremo de Jurisdição Constitucional.

Mas então, por que parece que atualmente o STF decide sobre tudo? A resposta a essa pergunta não é uníssona. Existem algumas circunstâncias que podem explicar esse fenômeno. Irei falar sobre cinco delas: judicialização da vida; extensão dos direitos fundamentais; a natureza política da Constituição; acúmulo de competências do STF e o estado de crise entre os Poderes.

Primeiro, a judicialização da vida pode ser definida em termos simplórios como a tendência corrente no Brasil (e não somente aqui) de levar desde os conflitos menores (como briga de vizinhos) até casos complexos (desastres ambientais) para apreciação do Judiciário. Muitos casos simples, da vida particular, não precisam ir ao Judiciário, podendo ser solucionados com mediação ou conciliação. Ocorre que nossa sociedade sente a necessidade de uma autoridade externa dizendo o que é certo e o que é errado.

Resolvi começar pela judicialização da vida porque alude para nossa responsabilidade pelo o que o jurista Mauro Cappelletti chama de “agigantamento do Poder Judiciário”. É muito ingênuo acreditar que esse Poder tenha alcançado tamanho protagonismo sozinho. O papel do Judiciário hoje é responsabilidade nossa também.

Os críticos do Poder Judiciário costumam dizer que sua função é meramente a aplicação da lei, de maneira que não é cabível a ele intervir nem na vida particular das pessoas, nem no exercício das funções dos outros poderes. Assim, o Judiciário agiria somente por reação ou com função negativa. Quando ele intervém onde não lhe é chamado, ele atua de maneira ativa, por isso, os críticos costumam acusar o Judiciário de ser ativista, ou seja, acusam de estar indo além do que lhe foi determinado.

Concordo em parte com os críticos, mas parece que eles se negam a reconhecer que o Judiciário foi chamado sim a resolver conflitos. Todos os dias chamamos o Judiciário para solucionar nossos problemas, desde os mais simples aos mais complexos. Se ele é reativo, de certa maneira, nós o provocamos. Ou nas palavras do Cappelletti, nós o agigantamos.

A segunda circunstância é a extensa lista de direitos fundamentais reconhecidas na nossa atual Constituição. Na história das constituições brasileiras (já tivemos sete: 1824; 1891; 1934; 1937; 1946; 1969; 1988), a Constituição de 1988 sem dúvida é aquela que reconheceu o maior número de direitos para pessoas. Acontece que abundância de direitos, de certa maneira, terá como consequência, abundância de litígios. Isso resultará em uma provocação intensa do Judiciário, incluindo o STF. Entretanto, não concordo com os estudiosos que consideram isso como algo ruim, pelo contrário, a democracia se faz com direitos e conflitos. É desarrazoado, para não dizer, autoritário, criticar uma Constituição por reconhecer direitos aos seus constituintes. Mesmo que não seja algo negativo, não se pode negar que é uma condição atual que cobra participação do Judiciário.

A terceira característica é a natureza política da Constituição. Muitas pessoas têm uma interpretação equivocada sobre o que é político. E outras pessoas até consideram absurdo dizer que a Constituição é política. Porém, o caráter jurídico da Lei Fundamental é algo bem recente na história do Direito. Dizer que a Constituição tem natureza política significa que por meio dela, o povo e o Estado, decidem qual a melhor forma de atuar e existir. Por exemplo, escolhemos a república, mas poderíamos optar pela monarquia. Optamos pelo Estado federativo, no entanto, poderíamos ser um Estado unitário. Essas escolhas são decisões. Decidir os caminhos que se quer trilhar é matéria política. Portanto, a Constituição expressa nossas decisões coletivas como povo.

Não é possível negar o caráter político da Constituição, de igual maneira, é ingênuo acreditar que o STF como guardião da Lei Maior não atue de maneira política também. Acontece que o STF tem um papel complexo: limitar o político pelo jurídico. Se ele atuar somente de maneira política ele sai do caminho que lhe foi determinado, que é a defesa da Constituição; se ele atua somente de modo jurídico, ele esvazia a Constituição, diminuindo toda sua importância.

A vida do STF torna-se ainda mais complexa ao compreender a quarta circunstância, que seja, ele é ao mesmo tempo guardião da Constituição e também “Tribunal em Última Instância”. Isso significa que ele tanto aplica a Constituição, como ele deve julgar os recursos de outros tribunais. Acaba que ele se torna ponto de escape de todas as causas de importância no país. Cite-se como exemplo o julgamento de deputados, senadores, ministros e outros políticos. Essa múltipla competência do STF gera uma acumulação de funções. Ele deve decidir os casos jurídicos mais importantes e polêmicos do país, por isso, não é de se estranhar que todos os dias vejamos comentários sobre a cúpula máxima do Judiciário na TV, vídeos, jornais etc.

A quinta circunstância é a crise entre os poderes. Algumas pessoas negam ferrenhamente que exista alguma “crise”. Mas o fato é que no Brasil a crise virou uma estratégia de governabilidade. A disputa de forças entre os poderes é algo natural das democracias ocidentais. No direito isso é chamado de sistema de freios e contrapesos. Cada um dos poderes vai tentar se sobrepor ou limitar o outro. Consequentemente isso gera litígios de grandes proporções. Adivinha quem vai ter que intervir para solucionar essa “quebra de braço”? Exatamente: o STF.

Essas cinco circunstâncias são meramente ilustrativas. Existem outras, mais implícitas. Verifica-se que, de fato, o Supremo Tribunal Federal detém de uma centralidade no Judiciário brasileiro contemporâneo. Também pode-se dizer que o Judiciário como um todo ocupa um local de protagonismo por um diagnóstico social de relações mais conflituosas, busca pelo poder de decidir e luta por reconhecimento.

Entretanto, distintamente do que o senso comum aponta, esse “agigantamento” de que fala Cappelleti, não tem apenas motivações subjetivas de luta por poder, mas também origens institucionais e históricas. A nossa Constituição atual ajudou a criar este cenário pró-Judiciário. É preciso uma anamnese histórica de quais os motivos para as coisas estarem assim. A título de exemplo reflexivo, destaco para o fato de que os momentos mais autoritários da história brasileira foram aqueles em que o Judiciário foi silenciado. Isso é sintomático e prospectivo. Porém, não significa que ele não esteja isento de críticas, ao contrário, é justamente por sofrer da opressão que ele deve ser observado para não se tornar o opressor. Pois no fim, quem vigiará os vigilantes?

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