Da redação
O professor doutor Alexandre Maciel tem uma trajetória vinculada ao jornalismo de fôlego. Sua trajetória no curso de Comunicação – Jornalismo da UFMA Imperatriz está atrelada a este prática de produção, com experiências como o Jornal Arrocha (um laboratório do curso), as orientações de TCC no formato livro-reportagens e a ministração de disciplinas ligadas a este campo.
Também foi essa a decisão que tomou ao estudar, no doutorado, o universo da produção de autores de livro-reportagem brasileiros.
Nesta entrevista, ele reflete sobre o jornalismo de fôlego, com muita esperança: “onde se planta o jornalismo de fôlego ele viceja bonito”. Confira.
Região Tocantina – Como o senhor avalia o contexto atual para um jornalismo que vai além das hardnews?
Alexandre Maciel – O jornalismo, como instituição, está sendo forçado a uma profunda reflexão nos dias atuais, em uma crise que não escolhe uma mídia específica. Não é mais o único mediador entre o público e os poderes e tem que competir diariamente com uma enxurrada de notícias falsas, muitas vezes disparadas de forma arquitetada e criminosa, em múltiplas redes sociais. Estas, por sua vez, se apresentam muitas vezes mais sedutoras e ágeis para o “consumo” da informação do que aguardar o horário de um telejornal ou percorrer a página de abertura de um portal respeitado de notícias. Neste sentido, o jornalismo que vai além da notícia do fato instantâneo, que pode ser chamado de “fôlego”, já que exige mais tempo de produção e também mais espaço para ser veiculado, embora raro, se apresenta como um bom antítodo a um tsunami de desinformação que muitas vezes inunda o cotidiano das pessoas. No entanto, é preciso deixar claro que um portal de notícias, ou um telejornal, deveria buscar manter uma cobertura de hardnews, com boa apuração, mais rápida, um pouco mais fragmentada, também explorando as redes sociais, já que muitas questões diárias são urgentes, não podem esperar o tempo da reportagem. Ao mesmo tempo, as mídias tradicionais devem investir em equipes ou rodízios de profissionais que ficariam, a cada semana, dedicadas a focar em determinados assuntos que rendem análises mais aprofundadas de modo que possam apresentar para o leitor, mais para o final da semana, esse quadro de interpretação da realidade mais consistente.
Região Tocantina – O jornalismo tem vida em um texto mais longo, mais bem apurado?
Alexandre Maciel – Mais do que a notícia do minuto, as reportagens de fôlego se propõem a pensar uma problemática como o racismo ou a pandemia, pelo máximo de ângulos possíveis, com múltiplas fontes, utilizando recursos dinâmicos e didáticos, como infográficos, vídeos, áudios, não se esquecendo de oferecer uma narrativa atraente. Nesse sentido, uma reportagem aprofundada, contextualizada, pode demolir uma montanha de fake news. Nada disso é fácil, envolve aspectos desde a formação dos repórteres até o poder financeiro daquele determinado meio de comunicação, mas aquelas empresas jornalísticas que estão apostando pelo menos em parte nesse formato têm encontrado boa resposta do público. Digo que o jornalismo, além de ter vida em um texto longo e mais apurado, encontraria até uma possibilidade de reinvenção ou reencontro do seu próprio papel institucional junto à sociedade lançando mão dessas estratégias.
Região Tocantina – O senhor tem uma pesquisa extensa sobre livro-reportagem no Brasil, como ela foi feita e o que aponta para este gênero nos dias atuais?
Alexandre Maciel – Na minha pesquisa de doutorado, desenvolvida no programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), entre os anos de 2014 e 2018, consegui fazer longas entrevistas com jornalistas escritores de livros-reportagem brasileiros renomados, como Ruy Castro, Zuenir Ventura, Caco Barcellos, Fernando Morais, além de revelações como Daniela Arbex, Leonencio Nossa e Rubens Valente, passando pelo campeão de vendas Laurentino Gomes. Perguntei para todos quais eram as principais diferenças do seu método de trabalho para um livro-reportagem daqueles que eles tinham vivenciado ou ainda praticam nas redações. Também estava interessado nas suas formas de organizar as centenas de entrevistas, a massa incalculável de informação documental, em uma narrativa que fosse atraente e contextualizadora para o leitor, tanto em biografias quanto em reportagens mais alongadas. Concluo, a partir de mais de 22 horas de depoimentos e também em debate com o que concluíram outros pesquisadores que pensaram o livro-reportagem no campo acadêmico, que ele é um produto excelente para trabalhar problemáticas que exigem certa decantação do tempo para serem melhor compreendidas. O formato do livro-reportagem permite que os seus repórteres-autores tenham tempo para fazer e refazer longas entrevistas, raciocinar sobre as melhores formas de costurar as informações e mesmo apontar rumos, soluções possíveis para uma problemática social, já que se debruçam sobre ela às vezes por vários anos.
Região Tocantina – Onde se pode encontrar, hoje, além do livro-reportagem, grandes textos jornalísticos?
Alexandre Maciel – Tenho visto com muita esperança e felicidade o jornalismo dito de fôlego aparecer em todas as mídias, mesmo que na forma de experiências mais raras. E a particularidade de cada uma delas só agrega mais valor a esse tipo de prática mais paciente do jornalista. Veja quantas reportagens excelentes e mais alongadas, com imagens contundentes, muito bem editadas, foram trabalhadas para um programa semanal como o Fantástico, da rede Globo, tratando da pandemia da Covid-19. Ou a aproximação do leitor mais jovem que um portal como o UOL Tab tem experimentado, utilizando texto, vídeo, áudio, fotografias, infográficos, sempre abordando também reportagens aprofundadas preparadas ao longo de uma semana. Uma revista mensal como a Piauí, com perfis ultradetalhados, texto esperto, pautas inusitadas que lançam novos olhares sobre as problemáticas atuais do Brasil, também é um oásis e, na sua rotina de redação, muitas vezes os repórteres contam com meses para fazer uma reportagem. Sem falar na presença do jornalismo de fôlego também em mídias mais independentes, como o site da revista Nexo, que agrega jornalismo com análise, opinião. Ou experiências de narrativa em série em podcasts como o 37 graus, que traz para o campo radiofônico essa experiência. Veja que onde se planta o jornalismo de fôlego ele viceja bonito.
Região Tocantina – A internet é inimiga do texto longo?
Alexandre Maciel – Não, pelo contrário. A jornalista Eliane Brum certa vez apurou qual era o seu texto mais lido na ocasião em que mantinha uma coluna na internet para a revista Época e ficou surpresa ao constatar que tinha sido justamente um material bem longo, que ocuparia muitas páginas em um jornal. Tudo é questão de destrinchar criativamente para o leitor um tema com relação ao qual ele esteja talvez se sentindo confuso, já que é bombardeado por tantas manchetes fragmentadas ou pelas temíveis fake news, numa espiral de desinformação. E levando em conta que a internet possibilita, como já mencionei, fundir, em uma mesma reportagem alongada, texto bem trabalhado, infográficos, vídeos, áudios, tudo colaborando para a coesão narrativa, para o desdobramento da interpretação de uma história, ela pode ser encarada, pelo repórter bem formado e preparado, um território excelente para exercitar a reportagem de fôlego. Mas tudo isso envolve enfrentar uma cultura de rapidez desenfreada que toma não só o próprio fazer jornalístico, mas também várias outras instituições sociais. Até mesmo se a desculpa do leitor for falta de tempo para ler um texto mais longo, pode se contra-argumentar que a internet permite retornar para aquele texto na hora que você quiser, já que a reportagem aprofundada não está atrelada ao jogo do factual.
Região Tocantina – A tecnologia mudou a forma da apuração jornalística de grande extensão? Ou ainda é necessário, como disse o jornalista Ricardo Kotscho, o jornalista bater perna pela rua?
Alexandre Maciel – A pandemia e a necessidade do distanciamento social têm prejudicado algo que acho essencial no jornalismo, em concordância total com o mestre Kotscho: a vivência com os personagens, sentir de perto as suas realidades. Mas penso que o repórter que entende profundamente o ato da entrevista, o motor central de uma reportagem, pode desenvolvê-la com competência, também a distância. Só pondero que para a prática da reportagem é mais proveitoso utilizar ferramentas em que você possa ver a fonte do outro lado, verificar as suas expressões faciais, suas reações corporais, suas pausas. Mas penso que a prática da reportagem aprofundada, ao mesmo tempo, como prova o jornalismo de dados, profundamente conectado com as estratégias tecnológicas de prospecção e análise, pode se beneficiar bastante do uso das tecnologias. O repórter contemporâneo pode lançar mão de todo e qualquer instrumental tecnológico que o ajude a interpretar com cuidado, paciência, crítica, os acontecimentos e problemáticas.
Região Tocantina – Quais são, hoje, os grandes textos da imprensa brasileira?
Alexandre Maciel – Penso que na revista Piauí podem ser encontrados ótimos exemplos de repórteres jovens que têm praticado um trabalho de grande profundidade e bastante criativo em termos de abordagens inusitadas. Eu destacaria Roberto Kaz, Armando Antenore, Consuelo Dieguez e Bernardo Esteves. Você pode escolher aleatoriamente um texto dessas pessoas e não irá se decepcionar. Uma repórter como Eliane Brum e sua abordagem sensível do mundo a partir do jornalismo também é tão importante, que vem sendo alvo de muitos estudos acadêmicos. Daniela Arbex, que deixou as redações para se dedicar apenas aos livros-reportagem. Mesmo um jornalista clássico como Ruy Castro continua nos entregando obras tanto em crônica quanto, principalmente no campo do livro-reportagem, que são uma verdadeira aula de como uma pesquisa exaustiva e uma narrativa criativa ajudam a gente a mergulhar nos fatos históricos.
Região Tocantina – A reportagem sobreviverá ao século XXI?
Alexandre Maciel – Creio que, pelo que expus até agora, há claros indícios de que a reportagem, que por si, é um patrimônio simbólico da instituição jornalística, não só vai sobreviver como também pode ser nosso grande amuleto secreto para recuperar a credibilidade do jornalismo, hoje tão combalida. Veja que o The New York Times vem enfrentando a crise do jornalismo impresso apostando no formato digital diferenciado para o assinante, que ganha como principal vantagem ao pagar pela informação, justamente as reportagens exclusivas. Também fiquei bastante empolgado com o recente congresso da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), em setembro, que me revelou todo um outro mundo de produtores de reportagens bem mais próximo da lógica das redes e, acima de tudo, das populações geralmente esquecidas nas mídias mais tradicionais. Experiências como “A Ponte”, “Favela em Pauta” e “Alma Preta” são instigantes e profundamente ligadas a esses nossos tempos, procurem acompanhar.
Região Tocantina – Quem é o leitor da grande reportagem, hoje?
Alexandre Maciel – Definir quem é este leitor hoje, ainda demandaria pesquisas mais aprofundadas de recepção, que por vezes são complexas. Mas o que se pode deduzir, mesmo acompanhando os comentários que aparecem junto das reportagens de fôlego que vêm a ser publicadas em plataformas virtuais, é que o leitor fica agradecido quando sente que o material que lhe é oferecido foi apurado e apresentado com esmero. Os jornalistas escritores de livros-reportagem que eu entrevistei, com idades entre 40 e 85 anos, disseram que os seus leitores são pessoas que anseiam por ter contato com um jornalismo mais preocupado com a análise contextualizada das problemáticas contemporâneas e estariam um tanto frustrados com a narrativa muito fragmentada do dia a dia. Temos que apostar na formação de novos leitores de reportagens, sejam eles os jovens ou aqueles que, por enfrentaram condições de exclusão social, não se sentiam narrados pelo jornalismo tradicional. É uma questão de formação de leitores, mesmo, em todas as mídias, para um jornalismo feito de forma mais paciente.
Região Tocantina – E como é a formação nos cursos de jornalismo para capacitar os futuros jornalistas para o desafio da grande rep0ortagem?
Alexandre Maciel – Creio que deve ser interdisciplinar, transversal a todas as disciplinas laboratoriais e também nas áreas teóricas seminais, como a Sociologia, Antropologia, Filosofia, Psicologia e Ciência Política. Preparar um futuro repórter com olhar sensível para os problemas de sua cidade e atento aos personagens humanos que não são necessariamente as pessoas públicas, ocupantes de cargos, mas também das comunidades… Formar um profissional que exercite constantemente a autoanálise ética em cada etapa das reportagens que está realizando e tenha autonomia profissional e independência para poder propor para os grupos midiáticos no qual poderá se inserir a importância dessa reflexão coletiva, em equipe, durante a prática do jornalismo. Isso não se resolve em uma disciplina, uma “cadeira” específica, demanda um planejamento pedagógico sério. Não tenho estudos em mãos, acho inclusive que há muito campo para eles, no entanto, para dizer com segurança como anda se dando essa formação nas universidades de jornalismo. Mas posso dizer que, no curso de Jornalismo da UFMA do campus de Imperatriz, por exemplo, experiências como o jornal Arrocha, com 10 anos de existência, com 40 edições temáticas de caráter muitas vezes atemporal, unificando em trabalho interdisciplinar matérias como Jornalismo Impresso, Fotojornalismo e Planejamento Gráfico,m vale como um excelente exemplo de como uma formação desse naipe é possível e necessária. Por fim, há dois anos, no grupo de pesquisa Jornalismo de Fôlego, vinculado ao CNPq, temos lançado um olhar amplo sobre as produções que seguem esse viés, presentes em todas as mídias. Mas valem estudos mais aprofundados para entender como vem se dando a formação dos futuros jornalistas atentos à reportagem nas universidades brasileiras.
Uma resposta
Destaques (das respostas) para a “receita” (última resposta) delineada por ALEXANDRE
Tudo é questão de destrinchar criativamente para o leitor um tema
pelo repórter bem formado e preparado, um território excelente para exercitar a reportagem de fôlego
o repórter que entende profundamente o ato da entrevista, o motor central de uma reportagem, pode desenvolvê-la com competência, também a distância
interpretar com cuidado, paciência, crítica, os acontecimentos e problemáticas.
uma pesquisa exaustiva e uma narrativa criativa ajudam a gente a mergulhar nos fatos históricos.
um jornalismo feito de forma mais paciente.