sexta-feira, 23 de maio de 2025

UM CONTO AOS DOMINGOS – #029 – O NOME NA PAREDE (Lindevania Martins)

Publicado em 20 de abril de 2025, às 10:01

A menina parou de brincar. A velha boneca, que antes acalentava no colo, foi posta sobre um lenço amarrotado estendido no chão. Levantou e sacudiu a terra da própria roupa. Atraídos pelo odor de queimado, seus olhos escuros observaram a grande fogueira que ardia à sua direita. Era formada por restos de folhas secas, papel, madeira e galhos de árvores que iam se desfazendo rapidamente.
Era curioso como, ao mesmo tempo, o fogo a atraía e a repelia. As crianças mais velhas, mãos dadas, não dançavam e cantavam felizes ao redor das chamas no São João? Contudo, seu vizinho de dois anos não morrera tristemente queimado? Receava que a mãe aparecesse ali no quintal e ralhasse com ela, por isso esperou. Apenas quando o fogo se extinguiu iniciou sua aproximação. Avançou com as pernas curtas e negras, os pés miúdos enfiados em sandálias de dedo, o vestido simples farfalhando ao vento. Muito pequena e magra, pôs as mãos na cintura e curvou o tronco. Os olhos curiosos procuravam algo no meio das cinzas. Aqui e ali enxergava uns restos de brasa ou um pedaço de madeira intacto. De repente, deu um pulo de contentamento. Estendeu o braço e agarrou um toco de pau queimado, ainda morno, que iria se juntar aos que recolhera em outros momentos.
Embora a intenção fosse guardá-lo, o pedaço de carvão era tão perfeito que parecia pecado não experimentá-lo logo. Olhou de um lado para outro no quintal. Confirmou que, fora as galinhas ciscando, em total indiferença a sua presença, estava só. Aproximou-se das paredes externas da casa na qual sua mãe trabalhava há seis meses e onde as duas passavam o dia. Apertou o toco no branco da parede, convidativo como papel, e logo surgiram desenhos irregulares, garatujas infantis.
Escreveu seu nome, embora nunca tivesse frequentado escola e não conhecesse as letras. Parou. Olhou. Algo incendiava seu coração e podia jurar que seus olhos cintilavam. Escreveu o nome da mãe, da boneca deixada sobre o lenço e de outras coisas lindas. Contemplou aquelas formas cujo significado apenas ela conhecia, aquele alfabeto todo seu, feito de riscos, círculos e imaginação. A boca se abriu em um riso orgulhoso.
Ao ouvir passos, seu sorriso murchou e a respiração tornou-se acelerada. Escondeu o pedaço de carvão atrás das costas e esperou. Pelo barulho pesado, jurava que era algum adulto se aproximando. Seria a patroa? Uma mulher alta apareceu, secando as mãos no avental:
— Menina, que é isso? De novo? Você não aprende?
Respondeu para a mulher com uma voz magoada:
— Mãe, vou ser escritora. Estou treinando.
A mãe balançou a cabeça:
— A gente nasceu para o trabalho duro, filha. Uma vida repetindo a outra. Não para esses luxos de ler e escrever. Você vai aprender a cuidar da casa, de outras crianças, da comida. Talvez um dia, se houver tempo…
— Mas o meu sonho é escrever!
A mãe ficou em silêncio. Do nada, emendou:
— Apaga já isso aí. Quer que a Dona Isolda veja e eu perca o emprego?
Embora não fosse da sua vontade, a menina lavou a parede usando esponja, água e sabão. Mas não apagou tudo. Sobrou uma inscrição maior que as outras, que ela agora observava com um sorriso imenso, porque era seu nome, o mais bonito de todos:
“Carolina Maria de Jesus”.

SOBRE A AUTORA – Lindevania Martins é graduada em Direito, mestra em Cultura e Sociedade (UFMA), mestra em Direito Constitucional (UFF) e doutoranda em Direito (UFRJ). Ex-Delegada de polícia civil, é defensora pública de Defesa da Mulher e População LGBT. Atua como escritora, palestrante e pesquisadora em Gênero, Tecnologia, Direito e Literatura. Integra o Grupo de Pesquisa em Crítica Jurídica Contemporânea (UFF). É membro do coletivo Mulherio das Letras. Venceu o 6o. Premio CEPE de Literatura (2021). Autora dos livros “Anônimos” (2003), “Zona de Desconforto” (2018), “Longe de Mim” (2019), “Fora dos Trilhos” (2019), “A Moça da Limpeza” (2021) e “Teresa Decide Falar (2022).

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