Ana despertou com a luz suave do sol filtrando-se pelas cortinas desgastadas, trazendo um leve dourado que se esparramava pelo quarto, misturando-se ao cheiro de café fresco que alguém preparava e invadia o ar. A velha cadeira de balanço, ao lado da cama, balançava-se sozinha, como se ainda guardasse a memória das noites em que uma jovem mãe embalava seu bebê em sono tranquilo. Ana não se importava com o aroma do café, sua atenção estava fixada no berço ao lado, onde repousava sua “pequena Joana”. O semblante da “bebê”, sereno e inexpressivo, era um eco de tranquilidade que enchia o coração de Ana de um amor que não conhecia limites.
Com um cuidado quase reverente, Ana se aproximou do berço. As juntas, cansadas e estalando, denunciavam a idade, mas ela ignorou a dor que começava a se instalar nas articulações. “Bom dia, meu amor”, sussurrou com uma voz suave, deslizando as mãos enrugadas pelas cobertas sobre seu objeto de amor, como se estivesse tocando o próprio espírito da maternidade. Joana, tão perfeita, tão tranquila, não lhe respondia, mas Ana sabia que cada momento ao seu lado era um pedaço de eternidade.
O relógio marcava 7h30. Era hora de começar a rotina, e Ana sabia exatamente o que fazer. Com um gesto que trazia a segurança de quem repete um ritual há anos, pegou Joana nos braços, sustentando a cabecinha como se fosse feita de cristal. “Vamos ao banho, minha querida”, murmurou, os passos cautelosos ecoando pelo corredor.
No banheiro, a banheirinha já estava preparada, um altar onde a delicadeza e o carinho se encontravam. Ana imaginava havia enchido a bacia com água morna na noite anterior, testando a temperatura com o cotovelo. Cada movimento era um ato de devoção. Despiu Joana com uma destreza que refletia a prática de meses. “Agora um banho bem gostoso, não é, meu amor?” A água morna caía como um manto sobre o pequeno corpo, enquanto Ana a banhava com toques leves e ternos, falando sobre o tempo, sobre o que seria de suas vidas.
“Está tudo bem, Joana, não tenha medo. Eu estou aqui”, dizia, acariciando as costas de Joana, como se a “bebê” pudesse sentir sua presença. O diálogo era um monólogo afetuoso, onde cada palavra era um carinho, um sonho que pulsava entre elas.
Após o banho, Ana envolveu Joana em uma toalha felpuda, secando-a com um cuidado quase exagerado. “Prontinho, está sequinha”, sussurrou, depositando um beijo na testa da boneca. As gavetas do armário estavam repletas de roupinhas minúsculas, todas escolhidas com amor. “O que você acha desse macacãozinho azul hoje?” perguntava, mesmo sabendo que Joana nunca responderia. A cena era uma dança de amor e cuidado, um jogo de sombras entre a realidade e a fantasia.
Vestida e cheirosa, Joana foi acomodada na cadeirinha alta da cozinha. “Hora do café da manhã”, anunciou Ana, com uma alegria renovada que parecia florescer a cada dia. Preparava a imaginária panelinha de mingau com a precisão de um artista, mexendo cuidadosamente para evitar os grumos. “Você gosta tanto desse mingau, não é? Sei que sim”, dizia, levando a colher à boca da “bebê”, limpando o queixo como se Joana realmente pudesse comer. Cada gesto era uma expressão de um amor que transcendia a lógica.
Assim que “terminou” de alimentar Joana, Ana a pegou novamente no colo e caminhou até a sala, onde a luz do sol criava padrões dançantes no chão. No tapete felpudo, ela se sentou com dificuldade, as pernas trêmulas, e acomodou Joana de frente para si. “Olha só, querida, seu ursinho veio brincar com você!” exclamou, movendo o ursinho como se estivesse dando vida ao objeto inanimado.
As horas passavam rápidas. Ana conversava com Joana como se houvesse um mundo inteiro ali, repleto de risadas e alegria. As memórias de sua juventude vinham à tona, misturando-se à imaginação fervilhante da velha mãe. “Quando você crescer, eu vou te ensinar a cozinhar… Igual a sua avó me ensinou”, prometia, os olhos brilhando com a luz de um passado que ainda ardia em seu peito.
O cansaço começou a pesar sobre os ombros de Ana, e ela decidiu que era hora do cochilo. Levou Joana de volta para o quarto, deitando-a no berço, ajeitando o travesseirinho e cobrindo-a com uma manta suave. “Durma bem, meu anjo”, murmurou. Sentou-se na poltrona ao lado, com as mãos entrelaçadas no colo, balançando suavemente, enquanto o mundo ao seu redor parecia desaparecer.
Os minutos passaram, a realidade sussurrando com insistência nos ouvidos de Ana. As rugas profundas em seu rosto, o cabelo completamente branco, e a dor que se instalava nas articulações falavam de um tempo que ela não conseguia mais alcançar. O que era sonho e o que era real? Seu mundo se limitava àquele pequeno quarto e alguns cômodos da casa, àquela rotina meticulosa e carinhosa com a “filha” que acreditava ser de carne e osso. Mas Joana, ah, Joana, não passava de uma boneca, um pedaço de plástico que Ana cuidava como se fosse sua própria vida.
Joana, a verdadeira Joana, a filha mais velha de Ana, cuidava da mãe idosa e não reprimia os carinhos dispensados à boneca. Sabia que qualquer tentativa de fazê-la enxergar a verdade seria dolorosa, uma ferida aberta em uma pobre idosa que encontrara consolo na ilusão. Assim, permitia que Ana vivesse seu mundo de fantasia, onde a boneca era sua filha e onde ela ainda era a jovem mãe que sonhava.
E assim, todos os dias, Ana repetia a mesma rotina, banhando, alimentando e conversando com a pequena Joana. Um ciclo interminável de amor e devoção, em que a linha entre a realidade e a fantasia se tornava cada vez mais tênue. No silêncio de sua mente confusa, ela era feliz, vivendo em um espaço onde o amor não conhecia barreiras, onde a vida continuava a brilhar, mesmo que apenas no brilho dos olhos de uma boneca.
SOBRE O AUTOR – Humberto Cupertino Barcelos nasceu em Formosa, GO, mas reside no Maranhão desde a infância. Por isso, se identifica como “goianense”, uma fusão de goiano com maranhense. É graduado em Letras – Língua Portuguesa e pós-graduado em Docência do Ensino Superior, além de possuir uma segunda licenciatura em Marketing Digital.Membro da Academia Imperatrizense de Letras, onde ocupa a cadeira 17. Lançou, nos últimos anos, os livros “Viver Não é Suficiente” e “Onde Está a Poesia?”, ambos em versos, além de “A Moça de Pele Marrom” e “A Noiva do Rio”, em prosa, nos formatos impresso e audiolivro.Pelas redes sociais, Humberto realiza um trabalho contínuo de divulgação da literatura maranhense, apoiando as iniciativas das Academias de Letras e seus acadêmicos. Seu objetivo é aproximar a comunidade, especialmente os jovens, dos projetos promovidos pelas Academias, com foco na educação literária.