quarta-feira, 23 de abril de 2025

UM CONTO AOS DOMINGOS – #011 – “SEU GERALDO” (Altair Damasceno)

Publicado em 15 de dezembro de 2024, às 9:43
Print do Jornal O Progresso.

“Seu Geraldo”, era assim que era conhecido em Ecoporanga, cidade fincada entre montanhas, no longínquo extremo norte do Espírito Santo, divisa com os estados da Bahia e Minas Gerais, para onde se mudou nos idos de 1955, quando o ainda povoado já carregava nos ombros dos que para ali foram o sonho de ser cidade.
“Seu Geraldo” nascera no extremo sul do Espírito Santo. Homem de poucas palavras, honestidade ao extremo, com os dias só servindo para o trabalho. Muito jovem, casara-se com Alzemira, uma mulher de fibra e de coragem, pragmática ao extremo, que, nos tempos da minha juventude, passei a descrevê-la como uma ilha de praticidade em uma casa de sonhadores.
“Seu Geraldo” era das lides rurais. Não sei quando, como e por que fora parar no interior do município de Mantena, em área de litígio com o Espírito Santo. Ali “pegara uma lavoura de café à meia” e, muitas vezes, dividindo um ovo com arroz com sua amada Alzemira, colocou-me no mundo.
“Seu Geraldo” era um pai exemplar. Sua história é a força que me fez chegar aonde estou. Muitas coisas se perderam nas dobras do tempo. Mas o essencial, e até algumas vezes hilário, em mim ficou cravado, vindo sempre à memória junto com uma gostosa saudade.
Uma delas era sobre meu berço. Rindo, contava ele que meu berço fora feito de taquara, uma espécie de bambu, que era carregado durante o dia para o meio do cafezal e, à noite, pendurado sobre a cama onde, com a sua amada, buscava o descanso da dura faina do dia. Contava também que, se eu chorasse à noite, balançava o berço com os pés, até que novamente eu dormisse. A outra conto depois.
Nos fins de semana, o quintal de sua casa, plantada em meio ao cafezal, servia de uma improvisada barbearia, onde, graciosamente e como meio de aprendizado, cortava o cabelo e fazia a barba dos que por perto moravam.
Cansado de caminhar por entre milhares de pés de café, acariciando seus galhos em busca de grãos vermelhos que prometiam um futuro melhor, e já se achando um “barbeiro” com bastante capacidade, mudou-se para a cidade de Barra de São Francisco, já no Espírito Santo, onde alugou uma casa em um bairro distante para morar e um pequeno cômodo para montar a sua barbearia.
Dois anos trabalhando e esperando novos dias. E nada.
Ouviu falar de uma pequena Vila, chamada Joeirana – depois denominada de Ecoporanga – e decidiu, em 1955, para lá se mudar e tentar a sorte. Sempre como barbeiro.
Em 1957 foi instalada a cidade e, em 1959, foi instalada a comarca de Ecoporanga.
A cidade era despida de pessoas letradas, poucas sabendo ler e escrever. “Seu Geraldo”, por saber alguma coisa além de assinar o nome e de ler com dificuldade, foi chamado a ser Oficial de Justiça, passando em um concurso que fora feito na medida dos seus parcos e limitados conhecimentos.
“Seu Geraldo”, agora oficial de justiça, queria que a justiça fosse vista em cada um dos seus atos. As diligências para citação, intimação, busca e apreensão e penhora eram feitas no lombo de uma mula que ele cuidava como se fosse a extensão de sua família. No alforje de couro, bem fechado para não ter o conteúdo violado por uma chuva não desejada, levava os mandados a serem cumpridos. Tudo para ser cumprido como neles estava escrito.
De toda a sua vida de serventuário da justiça, outro fato ele nos contava com um meio sorriso no rosto e uma expressão de constrangimento. O sorriso, pelo modo como cumprira o mandado e o constrangimento pelo depoimento prestado pela testemunha intimada.
Narrava “seu Geraldo” que, em certo processo criminal, resultado de um assassinato de uma pessoa no povoado de Prata dos Baianos, interior da comarca, o criminoso não fora identificado e o juiz estava incomodado por não poder entregar a prestação jurisdicional de forma célere e equânime. O assassino deveria pagar pelo seu ato e o “seu Geraldo” se imbuíra de, além de oficial de justiça, tentar descobrir, nas suas andanças, alguma notícia sobre o criminoso.
Em uma de suas diligências pelo povoado de Novo Horizonte, que ficava perto do povoado de Prata dos Baianos, “seu Geraldo” hospedou-se na casa de um próspero fazendeiro local, chamado Chico Silva, que havia se tornado seu amigo.
Quando a tarde já era invadida pela noite, em uma conversa no alpendre da sede da casa da fazenda, Chico Silva confidenciou que sabia quem era o autor do assassinato que o juiz tanto desejava descobrir. Tateando como quem não queria nada, “seu Geraldo” tudo fez para que o seu anfitrião revelasse o nome. Tentativas frustradas, mas que, pelo menos, deixara no ar a certeza de que seu amigo Chico Silva sabia o nome do assassino, mas que não poderia divulgá-lo para ninguém. E não disse o porquê do seu obrigatório silêncio, pedindo ao “seu Geraldo” que essa confidência jamais fosse passada adiante.
“Seu Geraldo” voltara da diligência carregando nos lombos de sua mula amiga, além do peso do seu macérrimo corpo, uma dúvida: contava ou não para o juiz o que havia descoberto?!!! Quebrava ou não a confiança do amigo?
No outro dia, na inocência de um homem que só desejava ser justo e não prejudicar ninguém, após passar toda a noite lutando com sua dúvida, decidiu revelar para o juiz o que ouvira. E este, de imediato, já antevendo a glória de poder elucidar um dos crimes marcantes de sua comarca, expediu um mandado de intimação e entregou ao “seu Geraldo” que, lendo o nome do intimado, já entrou em pânico. Percebeu que havia dado com a língua nos dentes e colocado o seu amigo Chico Silva em maus lençóis.
“Seu Geraldo”, preocupado com o que fizera, pedira ao magistrado para designar outro oficial de justiça para cumprir esse mandado. Mas este, alegando que a pessoa a ser intimada residia em área de sua atuação, não acatou o pedido do “seu Geraldo” que, na manhã do dia seguinte, já saíra, bem cedo, levando no alforje o mandado de intimação e, na cabeça, mil desculpas para justificar ao seu amigo Chico Silva, a razão daquela intimação. “Seu Geraldo” conhecia um velho ditado: manda quem pode e obedece quem tem juízo.
No mesmo alpendre em que ouvira as confidências do seu amigo Chico Silva, “seu Geraldo” procedeu à intimação para que seu amigo se fizesse presente no fórum, em uma data bem à frente aprazada, mas se furtou, de todos os modos possíveis, de dizer a razão da intimação.
Na data assinada para o comparecimento do seu amigo Chico Silva ao fórum, para prestar depoimento, ele não compareceu. Irritação do juiz e decepção do “seu Geraldo”.
O juiz, Dr. Ruy Cortes, se não me falha a memória, achando-se desrespeitado, determinou expedição de novo mandado, o qual tinha duas expressões em letras maiúsculas: cumprimento COM URGÊNCIA, e o intimado, caso necessário, deveria ser conduzido “DEBAIXO DE VARA”.
“Seu Geraldo”, na sua praticidade no cumprimento das ordens recebidas, não estranhou a expressão “com urgência”, mas não sabia o real significado da expressão “debaixo de vara”, e ficou intrigado em como faria para cumprir a intimação do seu amigo Chico Silva, obedecendo a tais exigências. Para “seu Geraldo”, “debaixo de vara” era debaixo de vara mesmo, sem qualquer subterfúgio jurídico, de preferência com um bom cipó caboclo ou com uma vara de goiabeira, das que não quebravam nunca.
Um parêntese: para aqueles não familiarizados com as expressões jurídicas e que também não sabem, a expressão “debaixo de vara” significa “conduzido pela autoridade judicial” ou “condução coercitiva”. É usada para descrever a ação de oficiais de justiça ou de meirinhos que, por ordem judicial, procuravam e traziam à presença do juiz réus e testemunhas recalcitrantes, de forma obrigatória. A expressão “debaixo de vara” está na letra da lei e não há nada de vergonhoso nisso. 
De novo e no mesmo alpendre, escolhendo minuciosamente as palavras, “seu Geraldo” explicou ao seu amigo que teria de levá-lo, de qualquer forma e com urgência, à presença do juiz. Depois de até dizer que sua profissão estava em risco se o intimado não o acompanhasse e que o juiz até determinara que o levasse o debaixo de vara se não fosse por bem, “seu Geraldo” conseguiu que seu amigo Chico Silva o acompanhasse até a presença do juiz.
Da vila de Novo Horizonte até Ecoporanga, foram doze léguas de distância, percorridas em um silêncio pesado, que poderia ser tocado.
Aberta a audiência, depois de exortar o senhor Chico Silva a dizer a verdade e somente a verdade, o juiz perguntou, com todas as vênias: “senhor Francisco Silva, o senhor pode me dizer o nome de quem assassinou fulano?” Chico Silva, primeiro estranhou o fato de ser chamado por Francisco – já nem se lembrava de quando fora chamado como tal – depois, por ser inquirido por algo que só comentara com seu amigo Geraldo. E olhando de forma estranha para seu amigo, encarou firme o juiz, negando, peremptoriamente, que algo sabia a respeito.
De nada adiantou a insistência do juiz de que, sob jura, não poderia dizer quem lhe revelara que Chico Silva sabia o nome do indigitado assassino.
Terminada a audiência, “seu Geraldo” viu seu amigo sair quieto do fórum, sem dizer uma palavra. Numa troca de hospitalidade, Chico Silva dormiu na casa do seu amigo Geraldo, sem nada falar sobre o que acontecera na audiência.
No dia seguinte, no primeiro canto do galo, “seu Geraldo” fora ao quarto onde dormira seu amigo para chamá-lo para o café, mas ele já não mais estava. Por sobre a cama, bem arrumada como faz toda boa visita, havia um bilhete.
Com o bilhete nas mãos, “seu Geraldo” procurou o juiz, pedindo desculpas pelo que acontecera. Chegou mesmo a dizer que tudo fizera para trazer seu amigo, chegando a dizer ao seu amigo que fora ordenado pelo juiz, caso necessário a usar uma vara para o caso de uma recusa. E entregara para o juiz o bilhete deixado pelo seu amigo Chico Silva.
No rosto do juiz desenhou-se um sorriso amigo de compreensão e escutou-se um elogiou ao profissionalismo do “seu Geraldo”. O magistrado, de uma forma bem didática, explicou ao seu leal serventuário o que é conduzir uma pessoa debaixo de vara. A seguir abrira o bilhete e lera o seu conteúdo em voz alta: “meu amigo Geraldo, o assassino, cujo não sei o nome, ainda mora na região. Eu aprendi que falar a verdade tranquiliza a consciência, mas traz perigo para a vida”.
Os dois se entreolharam e cada um foi para seus afazeres, colocando uma pedra sobre o ocorrido.
Sei que “seu Geraldo” e Chico Silva continuaram amigos, para sempre!

Imagem cedida pelo autor.

SOBRE O AUTOR – Altair José Damasceno – Titular da cadeira de n° 22 da Academia Imperatrizense de Letras, nasceu nas Minas Gerais, em Mantena, uma cidade do contestado entre Minas e o Espírito Santo, no dia 15 de outubro de 1950; filho do Seu Geraldo e da Dona Alzemira. Nos primórdios de sua infância, seus pais mudaram-se para Barra de São Francisco e logo a seguir para a cidade de Ecoporanga, também no ES, onde iniciou os seus estudos. Aos onze anos de idade, foi estudar no Seminário Comboniano de Ibiraçu-ES e, em 1965, foi enviado para o Seminário Maior de São José do Rio Preto-SP, para os estudos de Filosofia e Teologia. Formou-se em Direito pela Faculdade Gildásio Amado – FADIC – de Colatina-ES, onde colou grau de Bacharel em Leis em 1974. Advogou por 12 anos, na cidade de Ecoporanga-ES, mudando-se para Açailandia-MA, em 1987, onde exerceu o magistério e a advocacia até 1993, quando se mudou para Imperatriz, onde advoga até hoje para várias empresas da Região Tocantina. Altair é pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho. É membro da Igreja Evangélica Nova Aliança, onde exerce o voluntariado, colocando os seus serviços advocatícios em favor dos membros menos favorecidos.

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