segunda-feira, 14 de outubro de 2024

UM CONVITE À REFLEXÃO: POR UM PROCESSO PENAL CIVILIZADO E DEMOCRÁTICO

Publicado em 14 de agosto de 2024, às 21:07
Fonte: Paulo Thiago Fernandes Dias – Advogado. Professor universitário (CEUMA e UEMASUL). Pesquisador-líder do grupo de pesquisa “Instituições do Sistema de Justiça e Dignidade da Pessoa Humana” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5436723442142911). Expert na comunidade jurídica “Criminal Player”. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Doutor em Direito Público (PPGD/UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PPGCRIM/PUCRS). Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (UGF). Bacharel em Direito (ICJ/UFPA). Instagram: @paulothiagof / Youtube: https://www.youtube.com/@INFORMARDIREITO
Imagem: FreePik Premium

Ao Estado é confiado o poder-dever de investigar, processar, julgar e absolver ou condenar pessoas pela prática das infrações penais previstas na legislação brasileira, motivo pelo qual, todo um aparelhamento é montado para o exercício dessas atividades, demonstrando tratar-se de uma opção constitucional contra o exercício privado da justiça ou da vindita particular.

Nesse ponto, a título de ilustração, questiona-se se ao Estado cabe o exercício ilimitado do poder investigatório a ponto de ignorar direitos fundamentais, nomeadamente o direito que o acusado possui de não produzir prova ou elemento de informação contra a si mesmo.

Por mais que a opção política pelo Estado Democrático de Direito tenha ficado inequívoca na Constituição da República, ainda se observam manifestações de agentes públicos que responsabilizam o “excesso” de garantias pelo recorrente sentimento coletivo de impunidade. Alguns ainda atribuem aos defensores de direitos humanos a responsabilidade pelo recrudescimento da letalidade policial (BOECKEL, 2019, p. da internet). Para muitos que assim pensam, os fins (apuração da suposta verdade real (sic), o combate ao crime, a segurança coletiva, o interesse público, etc.) justificam os meios (relativização ou supressão de direitos fundamentais, dentre os quais, o princípio que veda a autoincriminação forçada).

Há que se tomar cuidado com esse tipo de argumentação (de maneira especial, quando convertida em prática), posto que promotora de uma remissão ao período em que o Brasil esteve sob a égide de regimes ditatoriais, caracterizados, oficialmente, pela coisificação da pessoa humana, diante da desconsideração do que hoje se entende por direitos fundamentais, verdadeiros pilares do Estado Constitucional e Democrático de Direito.

Segundo PRADO (2014, p. 15), “o estado de direito tem nas regras do devido processo legal sua base jurídico-política, por meio da qual o exercício legítimo do monopólio da força tende a não se converter em arbítrio”.

Partindo-se do atual cenário, vale dizer, fracassado da política criminal de drogas brasileira, a situação fica ainda mais agravada (CARCERÁRIA, 2017, p. de internet), pois a Lei nº 11.334/2006 conferiu um alto (e perigoso) poder discricionário aos policiais para determinar quem é enquadrado como traficante ou usuário. Definição policial prévia essa que costuma ser levada em conta também pelo Judiciário, no momento da prolatação da sentença, conforme aduz Fonseca (2015, p. de internet):

Verificou-se que, em 44% dos casos analisados, os policiais militares alegaram que o acusado confessou a autoria no momento da prisão, mas, nos depoimentos formais, apenas 11% desses acusados efetivamente confessaram a autoria. O problema está na fase judicial, quando essas “confissões informais”, rechaçadas no depoimento formal do acusado, são levadas em consideração pelos juízes como “forte indício de culpa”.

Assim, a despeito da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso de constitucionalidade, sobre a inconstitucionalidade do crime de porte de drogas (40 gramas de maconha) para consumo pessoal, não é possível aferir que o cenário sofrerá mudanças significativas quanto à seletividade penal.

“1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III); 2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença; 4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6. Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário”[i].

Considerando somente o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal, diante da tradicional e inconstitucional atuação do Judiciário como agente de segurança pública, é difícil conceber a existência de equilíbrio de forças entre acusação e defesa em sede processo penal, mesmo quando o acusado seja detentor de boa condição financeira e desfrute de ótimo suporte defensivo.

Esse desequilíbrio de forças entre o Estado-acusador/investigador e o indivíduo é ainda mais transparente em relação à costumeira clientela do Direito Penal brasileiro. Não por acaso, consolidou-se no Brasil o estereótipo da figura do traficante como sendo do gênero masculino, jovem, de baixa escolaridade, pobre e negro, conforme dados do Ministério da Justiça[1].

Com vistas à redução desse desequilíbrio, a Constituição da República garante àquele que é alvo de investigação/processamento um rol de direitos fundamentais que integram o devido processo constitucional, como forma de legitimar a atuação estatal.

Analisando o processo penal à luz da Teoria dos Jogos, Alexandre Morais da Rosa (2014) argumenta que as partes devem agir com lealdade, evitando o que define como doping processual, apto a deslegitimar os provimentos judiciais dele decorrentes, sob pena de inevitável invalidação, por vício de nulidade.

Enquanto legitimado para o exercício do direito de punir, o Estado deve ser o primeiro a garantir, por meio de seus agentes, que os procedimentos e as garantias individuais sejam respeitados, assegurando, portanto, a ética na apuração (seja durante a fase de investigação preliminar, seja durante a etapa judicial) de infrações de natureza penal.

Precisamos, portanto, seguir atentos e fiscais da atuação estatal no âmbito das práticas criminais. Há muito a ser feito, criticado, corrigido e estudado. A grande maioria da sociedade brasileira não ganha absolutamente nada com um Sistema Penal autoritário e seletivo.    

Até a próxima semana.   


[1] Sobre o perfil da população carcerária brasileira: “Os presos do sistema penitenciário brasileiro são majoritariamente jovens, negros, pobres e de baixa escolaridade, aponta o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado nesta terça-feira, 23, pelo Ministério da Justiça” (disponível em: < http://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2015/06/23/interna_nacional,661171/levantamento-aponta-que-maioria-dos-presos-no-brasil-sao-jovens-negro.shtml> último acesso em 02 de abr 2016).


[i] Fonte: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506

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