terça-feira, 15 de outubro de 2024

Artigo de segunda #47 – O ÂNGULO NOTURNO DE DÉO SILVA

Publicado em 29 de julho de 2024, às 19:47
Fonte: José Neres — Professor. Membro da AML, ALL, APB e da Sobrames-MA
Imagem criada com auxílio da Inteligência Artificial

       Déo Silva, nome literário do poeta caxiense Raymundo Nonato da Silva, é um daqueles talentosos escritores que brilharam em determinada, mas que acabaram sendo vítimas de um incômodo silêncio/esquecimento que tolda grande parte de nossa intelectualidade.

       Fruto dos laços amorosos que uniram o casal Jefferson Antônio da Silva e Aracy Carneiro da Silva, o poeta, jornalista e cronista caxiense veio ao mundo no dia 15 de agosto de 1937, e faleceu no dia 27 de setembro de 1983, aos 46 anos de idade. Apaixonado pela língua portuguesa e sua gramática, Déo Silva era um autodidata nos estudos da linguagem e isso transparece claramente em sua produção literária, na qual o esmerado jogo de palavras e a elegância na escolha lexical demonstram grande domínio tanto da norma culta quanto do uso criativo da linguagem escrita.

       O poeta começou sua educação formal no Grupo Escolar Gonçalves Dias e depois foi matriculado no Colégio Caxiense, mas não chegou a completar seus estudos regulares. Contudo, a falta de um diploma não impediu que o escritor tivesse importante e diversificada atuação na imprensa maranhense, colaborando em diversos jornais e exercendo o cargo de redator-chefe do Suplemento do Diário da Manhã, entre os anos de 1957 e 1959, quando contava com pouco mais de 20 anos de idade. Sempre ligado às lides jornalísticas e conhecido por sua voz melodiosa, o escritor trabalhou também como redator e locutor em emissoras de rádio, mas sempre deixou claro que sua satisfação maior era o contato direto com as páginas impressas do jornal.

       Além do envolvimento com as artes e com o jornalismo, Déo Silva também trabalhou no Banco do Brasil em Caxias e Pinheiro (MA), Marabá (PA), Tefé (AM) e Jaboticabal (SP), foi chefe de gabinete da Prefeitura de Caxias e assessor cultural do Departamento de Assuntos |Culturais da Fundação Cultural do Maranhão, entre outras atividades burocráticas

       Bem jovem, aos 22 anos, o poeta caxiense estreou em livro, com a publicação de Ângulo Noturno, um pequeno volume com apenas 42 páginas, impresso pela Gráfica Jaguarema, na capital maranhense, em 1959, e que seria bem recebido por parte dos leitores da época e que pode ser lido ainda hoje, seis décadas depois, com certo grau de atualidade, pelos admiradores da boa poesia.

       Ângulo Noturno é uma obra que traz dentro de si uma mescla de prosa poética e de poemas elaborados em versos livres (sem preocupação com um rigor métrico pré-determinado) e brancos (sem o uso ostensivo de rimas). É possível notar, ao correr das páginas, uma certa angústia existencial de um eu lírico que se divide entre o ser e o nada, entre o desejo de ser e a certeza do não poder ser, entre o carnal e o psicológico, entre o sexo e a fértil imaginação. Não é à toa que grande parte da ambientação imagética dos textos se dá em um ângulo fechado em conflito com a necessidade de um espaço maior para expor as sensações que teimam em travar um combate “entre o apodrecimento da lógica e os súbitos abismos da linguagem” (pág. 11).

       O eu lírico quase sempre é um ser que não se conforma com as obviedades que podem ser bem aceitas por quem nada conteste, mas que podem servir de trampolim para quem encontra nas dúvidas a própria razão do viver. Desse modo, é possível admitir que:

A noite em si não existe. Eu que a componho no silêncio onde me gasto. Agora estou múltiplo e cumpre não apenas estar, mas estar-me. (pág. 12)

       Ao longo de todo o livro, esse eu lírico está em busca do inefável e tenta enfrentar seus fantasmas ora pelo viés da indiferença, ora pelo prisma da ironia, mas, de qualquer forma, reconhece que se encontra sozinho em uma jornada para dentro de si mesmo. O que ele pretende é:

Desvendar insofridos rumos. Encontrar-me estranho, sem ninguém. Ser-me impacto vivo. E descobrir as lágrimas que jorram das paredes. (…) estou isolado, e as palavras são vestígios inúteis. (…) Lá fora, um dragão fantástico dorme seu enigma. (pág. 14)

       Nos poemas desse livro fica claro que, assim como ocorria com os poetas da segunda fase do Romantismo, o viver torna-se um peso para o eu lírico, para quem todos nós “somos o florescer de um ludíbrio amargo” (pág. 21) e que vive uma eterna angústia na qual:

O tédio que escorre do meu humano cérebro é o mesmo que vibra no corpo das montanhas e freme, em contorções litúrgicas, sobre o cadáver do poema. Que suicídio verto sobre o poço. (pág. 17)

       Os traços da despedida, do isolamento e da morte são visíveis ao longo de todo o livro. Alguns vocábulos como muro, quarto, pedra, nevrose, insônia e fuga rementem constantemente a uma incomunicabilidade do ser e aos binômios vida X morte / presente X passado / alegria X tristeza, sendo que os primeiros termos dessa equação (vida – presente – alegria) trazem impressos em si o estigma da ausência e da incerteza e os elementos finais (morte – passado – tristeza) são tidos como algo garantido e até mesmo desejado.

       Como “o vocábulo corrompe o muro” (pág. 31), sendo o muro o elemento limítrofe entre o dentro e o fora, uma linha divisória entre o eu e os outros, resta ao ser então o refúgio do quarto, que é visto como um ponto íntimo, praticamente impenetrável e indevassável aos olhos alheios, mas totalmente familiar para que vive e circula em torno dele. O poeta descreve esse recinto como sendo “o quarto alucinável, a rede, os livros. A corda e a asa da escápula são um roteiro para a morte” (pág. 30). Como ele mesmo explica em outro poema: “o quarto não era mais o quarto, mas eu mesmo, com tudo aquilo que sou.” (pág. 32).

       Além desses périplos em torno de um eu que se reconhece quando está diante de si mesmo e do desdém do eu lírico para com “homens querendo pisar em Deus”, outro detalhe que chama a atenção em Ângulo Noturno é a maestria do poeta ao formular jogos de palavras e encontrar soluções que vão além das palavras escritas, envolvendo sons e imagens mentais, como ocorre em:

No som (sal)

não solvo o sol que, dissoluto,

seca no crânio,

as águas do limite. (pág. 17)

       Não se trata apenas do uso de palavras com sons e formas semelhantes, mas da capacidade de dar multiplicidade semântica a um discurso que desperta sensações diversas. Outro bom exemplo desses bem elaborados jogos de palavras pode ser encontrado na transcrição abaixo, na qual o uso dos parênteses e das espacializações permitem variadas leituras com múltiplas interpretações sobre a essência humana:

o corpo (cor e pó)

escalavra

a palavra e o espesso

espaço

do ermo que

armo

a carne só

arde em si

e

no f(osso) é o homem

solve-se e

salva-se (pág. 25)

       2019. Seis décadas após seu lançamento e já sem a presença física do autor, Ângulo Noturno continua um livro jovem e jovial, capaz de mostrar caminhos às diversas gerações que descobrem diariamente que “o amanhã move-se entre névoas feitas de ludíbrio e sustenta, em pânico, o suicídio diário que me acolhe” (pág. 12). Nesses sessenta anos, os poemas de Déo Silva continuam ensinando que devemos:

Imaginar um mundo onde a estética flutue e o inconformismo alucine as regras; trabalhar a desintegração da dúvida; e fulgir,

e criar

e sonhar… (pág. 19)

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