O estudo sobre a aplicação da lei processual penal em razão do tempo diz respeito aos fundamentos do Direito Processual Penal. Assim, para melhor tratar o tema, faz-se relevante uma breve explanação sobre o contexto histórico e político da criação do Código de Processo Penal, lá no início da década de 1940[i], posto que o artigo 2º desse diploma legal estatui: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”[ii].
Marco Aurélio Silveira (A cultura inquisitória vigente e a Origem Autoritária do Código de Processo Penal Brasileiro. In: R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 264 – 275, jan – fev. 2015) ensina que o Código de Processo Penal, na verdade um decreto-lei editado pelo então presidente da República Getúlio Vargas, foi a primeira legislação processual penal unificada, a despeito de tal unificação ter sido aprovada durante a constituinte de 1934. É que antes do Estado Novo (1937-1945), cada Estado-membro era competente para legislar em matéria processual penal. Por conta disso, alguns estados possuíam a sua própria codificação legal em matéria processual penal.
“A Constituição de 1891, ao se alinhar com o modelo federativo norte-americano, atribuiu aos Estados a competência para legislarem sobre o direito processual. Em consequência, quando ocorreu a Revolução de 1930, existiam, na federação brasileira, vinte e quatro Códigos Processuais em vigor” (Leite, Antônio Teixeira. A constituinte de 1934 e a unificação do direito processual brasileiro. In: Rev. Fac. Dir. Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 32, n. 2: 35-50, jul./dez. 2016).
Vale pontuar também que o Código de Processo Penal foi gestado sob a égide da Constituição de 1937, reconhecida como autoritária pela doutrina em geral, dado que ampliava os poderes do Presidente da República, da mesma forma que limitava o exercício de direitos fundamentais pelos cidadãos.
Essa introdução sucinta serve para reforçar que os dispositivos ainda vigentes, desde 1941, do Código de Processo Penal devem passar por uma filtragem constitucional, isto é, o intérprete precisa conferir o que de fato foi recepcionado pela Constituição da República de 1988. Afinal, vigência e validade são institutos distintos.
O estudo da aplicação da lei processual penal em razão do tempo está atrelado à ideia de sucessão de uma lei por outra. Assim, conforme a lei de introdução ao Direito brasileiro, uma lei pode ser revogada expressa ou implicitamente por outra. Haverá revogação expressa quando a lei mais nova for explícita nesse sentido. Será, porém, o caso de uma revogação tácita quando a lei mais recente não mencionar diretamente a lei revogada, mas passar a tratar da mesma matéria de forma diferente. Ademais, a revogação de uma lei por outra pode ser total ou parcial.
Uma lei é considerada vigente quando o seu cumprimento é obrigatório e isso se dá 45 dias após a sua publicação ou conforme previsão legal específica determinando o contrário (geralmente, as leis costumam informar que entram em vigor na data de sua respectiva publicação).
Por outro lado, o termo validade é empregado para aferir o nível de compatibilidade de uma norma com o Texto Constitucional vigente (validade em sentido material). Repisando: “a validade não se confunde com a vigência, visto que pode haver uma norma jurídica válida sem que esteja vigente, isso ocorre claramente quando se vislumbra a vacatio legis1 ou quando o dispositivo legal é revogado, embora continue vinculante para os casos pretéritos” (Couto, Reinaldo. Considerações sobre a validade, vigência e eficácia das normas jurídicas. In: Revista CEJ, Brasília, Ano XVIII, n. 64, p. 7-12, set./dez. 2014).
Logo, é possível que se tenha uma norma vigente, porém inválida. Exemplo: a chamada lei de imprensa, aprovada na década de 1950, cuja não receptividade constitucional fora declarada pelo Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento da ADPF nº 130.
Sobre a aplicação da lei processual penal em razão do tempo, Renato Brasileiro (Manual de Direito Processual Penal. Salvador: Juspodivm, 2023) destaca que o Código Penal adotou a regra da atividade, que se baseia no tempo do crime. Nesse sentido, até por conta de mandamento constitucional, se uma lei nova surgir após a prática do delito e sendo ela mais favorável ao réu, ela irá retroagir, aplicando-se ao fato passado (retroatividade). Igualmente, se após a prática do crime surgir uma lei mais gravosa (por exemplo, ampliando o tempo de pena ou o prazo para progressão de regime), o réu continuará sujeitado à lei vigente à época da prática do crime (ultra-atividade).
Ocorre que a lei processual penal, eminentemente processual, isto é, aquela que se ocupa de procedimentos, atos processuais e técnicas do processo, tais como a que estabelece o prazo para o oferecimento da inicial acusatória ou que fixa o número mínimo de peritos para a realização do exame de corpo de delito, nos exatos termos do artigo 2º do Código de Processo Penal, não se sujeita à extra-atividade (não podendo ser aplicada de forma retroativa e nem ultra-ativa, nos moldes da lei penal). Isso se justifica em razão do critério adotado pelo CPP, qual seja, o do tempo do ato processual e não o do tempo da prática do crime.
Nesse sentido, em se tratando de norma processual penal pura, aplica-se o brocardo “tempus regit actum”, isto é, uma vez praticado o ato processual, caso surja uma legislação nova prevendo a realização desse ato de maneira diferente, ainda que mais favorável ao réu, ela não retroagirá. O Código de Processo Penal adotou o sistema do isolamento dos atos processual como regra (Távora, Nestor; Alencar, Rosmar. Curso de Processo Penal. Salvador: juspodivm, 2022).
Entretanto, merece espaço a crítica cunhada por Aury Lopes Jr (Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2021), dentre outros doutrinadores, com vistas à filtragem constitucional do artigo 2º do CPP, para que a regra da imediaticidade ou do “tempus regit actum” seja superada pela extra-atividade de uma norma processual penal pura mais benéfica ao acusado:
“Portanto, impõe-se discutir se a nova lei processual penal é mais gravosa ou não ao réu, como um todo. Se prejudicial, porque suprime ou relativiza garantias – v.g., adota critérios menos rígidos para a decretação de prisões cautelares ou amplia os seus respectivos prazos de duração, veda a liberdade provisória mediante fiança, restringe a participação do advogado ou a utilização de algum recurso etc. –, limitar-se-á a reger os processos relativos às infrações penais consumadas após a sua entrada em vigor”.
Até a próxima semana.
[i] DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.
[ii] Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm