“Não faça biscoitos, faça pirâmides”. Esse foi um dos conselhos do grandioso escritor mineiro Guimarães Rosa ao também gigantesco Fernando Sabino. A partir dessa frase, o autor de “O grande Mentecapto” começou uma reflexão sobre as obras literárias que podem ser consideradas eternas (as pirâmides) e aquelas que são transitórias e que trazem satisfação por apenas alguns instantes (os biscoitos). No entanto, do alto de sua perspicaz delicadeza literária, Sabino chegou à conclusão de que tanto as pirâmides quanto os biscoitos podem ser importantes para os consumidores de arte.
No mundo prático, parece que as pessoas são cobradas e produzirem verdadeiros monumentos cada vez que decidem produzir algo. Mas não é bem assim. É possível produzir delicadas peças de ourivesaria literária e nelas incrustar preciosidades que talvez tenham o brilho ofuscado pelo tempo, mas que continuem tornando o caminho das próximas gerações mais agradáveis e menos áridos. Porém, quase sempre, quando um escritor decide seguir pelas veredas da simplicidade, algumas pessoas veem isso como falta de talento e/ou de profundidade.
Na clássica Roma, Catulo, um dos melhores poetas de todos os tempos sentiu isso na pele. As miudezas (nugae) de Catulo foram muitas vezes vistas como poemas superficiais, no entanto esses poemas permitam que os pesquisadores de hoje vejam o mundo romano pelas frestas das intimidades devassadas por Catulo. Mais próximo à atualidade, o poeta pantaneiro Manuel de Barros às vezes é lido com desconfiança, afinal de contas, quem faz “o desprezível ser prezado” nem sempre pode ser compreendido por quem só tem olhos para a imensidão das pirâmides.
No Maranhão, a escritora e professora Laura Rosa (1884-1976) também muitas vezes optou por retratar em seus contos e poemas as coisas simples do cotidiano. Foi dessa forma, usando sua sensibilidade e seu talento literário que Laura Rosa transformou a imagem de uma mera folha ressecada em um dos mais belos sonetos de nossa literatura, conforme pode ser visto abaixo:
Vede, senhor, apodreceu na lama
Eu a vi há muito tempo entre a folhagem
Antes do vento lhe agitar a rama
E do regato, sacudi-la à margem.
De vigente e de verde tinha fama
Da folha mais formosa da ramagem
Desceu nas águas e resta da viagem
O labirinto capilar da trama.
Ninguém pode fazer igual rendado
Nem filigrana mais perfeita e linda
Nem presente melhor pode ser dado.
Guardai, Senhor, guardai este esqueleto.
Todo cuidado! É uma folha ainda,
Onde escrevi, de leve, este soneto.
Além de utilizar o esqueleto de uma folha como mote para um poema, outros assuntos considerados “menores” foram utilizados pela escritora como fonte de inspiração. Um exemplo disso é o poema “D. Formiga”, no qual ele descreve uma fileira de formigas e comenta sobre o que nós podemos aprender com o trabalho desses pequeninos seres. Logo na estrofe inicial desse poema é possível perceber a suavidade dos versos e o interesse por trazer para o âmbito da poesia algo que nem sempre paramos para observar.
Vai uma atrás da outra. É uma fileira
Negra e ondulada, longa e deslizante,
Cada qual mais leve.
Mais ligeira
E mais interessante.
No conjunto poético de Laura Rosa é possível encontrar também textos que têm como foco de interesse uma aranha a tecer sua teia (A Tecelã), a descrição de uma carnaubeira (A Carnaubeira), a singela beleza de um amanhecer (Aurora), o marulho das águas a correrem no leito de um rio (Cantiga das Águas), uma lagarta passeando pela folha de uma amoreira (Lagartinha de Seda), dois lenços de seda encontrados no bonde (Lenços), uma estatueta de porcelana quebrada (Pierrot), um pôr-do-sol (Recolhimento), uma chuva à beira de uma lagoa (O Rouxinol e a Rã) e um menino querendo vender uma bola para comprar flores para o enterro de sua mãe (Cousas da Rua) e muitas outras situações que cotidianamente passam despercebidas, mas que, ao serem vertidas em verso, acabaram se perpetuando no tempo.
Porém, não são apenas de versos singelos escritos de modo ocasional e descompromissado. Há, dentro de cada um deles, uma mensagem a ser decodificada, seja ela voltada para um mergulho na espiritualidade ou em projeto de cunho religioso, seja uma crítica social, às vezes sutil. Dessa forma, até mesmo uma borboleta pousada em um recinto da casa pode servir de motivo para uma reflexão, como ocorre no poema “A Felicidade”, de onde extraímos a seguinte passagem:
A felicidade é uma encantada
E esquisita
Borboleta dourada
Qualquer rumor pode afastá-la…
Se ela se assusta,
Foge…
Nem podeis calcular o quanto custa
Apanhá-la
Em determinados momentos, fica a impressão de que Laura Rosa, como ilustre professora que era, escrevia pensando em suas aulas e em seus pequeninos alunos. Ela, então fazia uma espécie de incursão pela escrita voltada para o público que iniciava seus contatos com as palavras escritas e que chegavam à escola carregados pela curiosidade. É o caso do poema “Lagartinha de Seda”, que traz um diálogo entre uma pessoa (aparentemente uma criança) e uma lagarta. A partir da leitura desse poema, é possível ao professor trabalhar com sua turma uma série de assuntos, desde o ciclo vital do bicho-da-seda até sua importância para a economia e a relação com o meio ambiente. Tudo isso sem perder a esfera de simplicidade, podendo relacionar metaforicamente também essas transformações físicas com a passagem da infância para a adolescência.
Em outros momentos, alguns poemas de Laura Rosa parecem ter sido escritos para tratar de assuntos voltados para a religiosidade. Poemas como “A Mesa”. “Canção de Dezembro”, “Cristo de Belém!”, “Natal”, “Prece”, “O Képi de Bebê”, “Regina Martyrum” e “Preces” podem ser utilizados como elementos introdutórios para estudos sobre datas comemorativas religiosas e personagens bíblicas. Como pode ser visto no fragmento abaixo, às vezes a religiosidade aparece mesclada com o desejo de um Brasil melhor e mais próspero.
Ó doce Nazareno,
Doce Amigo,
Senta-te sempre à mesa
Comigo!
Formoso Carpinteiro,
Jesus,
Senta-te à mesa
Com cada brasileiro!
O tom patriótico aparece em diversos poemas de Laura Rosa, como é o caso de “No Altar da Pátria”, “Sombras Queridas” e “Salve”. Em casos assim, ele costumava recorrer aos grandes vultos e a determinados momentos da história do Brasil. Na estrofe final do poema “No Altar da Pátria”, ela conclama o povo a…
Sob um céu formoso, nosso céu de anil
Neste momento,
Nessa concentração, um lindo juramento
Juremos
Todos pelo Brasil!
Todos pelo Brasil!
Laura Rosa é o tipo de escritora que consegue transformar miudezas em algo imenso dentro do espectro poético. Sua poesia pode ser lida por pessoas com os mais diversos níveis de escolaridade e pode ser interpretada de modos diversos. A poesia de Laura Rosa ainda pode oferecer muitas oportunidades de estudo. É uma escritora multifacetada e que traz em sua obra a essência da Poesia.
Para alguns leitores, a obra de Laura Rosa pode parecer ter a efemeridade de um biscoito, mas a humanidade precisa desses acepipes para poder apreciar a longevidade das pirâmides.