terça-feira, 10 de dezembro de 2024

De contos, causos e oralidades – Das águas de maio

Publicado em 24 de maio de 2024, às 9:15
Fonte: Helena Frenzel – romanista, especialista em Literatura e professora de Espanhol e Português Brasileiro como línguas estrangeiras.
rain outside the windows of the villa. tropics. Imagem: FreePik Premium.

“É pau, é pedra, é o fim do caminho,

É um resto de toco, é um pouco sozinho.” (1)

São as águas de maio abrindo o verão,

É promessa de enchente e devastação.

Mas como assim, “abrindo o verão”? O verão no Hemisfério Norte não começa em junho?

Sim, até que começava, com chuvas normais, e maio costumava ser primavera, mês das flores. Porém, no ano da graça de dois mil e vinte e quatro, sob a regência do signo Mudanças Climáticas, este foi o mês das chuvas torrenciais também na região do Sarre, na Alemanha. Num único dia choveu tudo o que se esperava de água para um mês inteiro! E é lógico que os rios não aguentaram e transbordaram.

Num único dia, que começou durante a noite, a batida dos pingos nos telhados, que a princípio prometia uma noite tranquila de sono embalado aos desavisados, foi aumentando em ritmo e intensidade até mostrar ao que de fato veio. Muitos nem viram a água subindo, pois quando despertaram ela já estava lá, a seus pés, não como um cachorrinho, mas como alguém que toma de volta para si, em poucas horas, o espaço que lhe foi tirado ao longo de anos.

E esse foi o susto de muitos naquele dia fatídico, naquele dia dezessete. Amanheceu como se o Céu estivesse caindo a pingos largos e se estendeu por todo o dia, sem cessar. Houve os que se levantaram, se arrumaram e foram para o trabalho, tentando driblar a água que caía lavando calçadas e sapatos, muitos dos quais nem eram à prova d’agua, porque maio não é mês de se ter os pés molhados, e sim, primavera florida. No entanto, ninguém esperava o que aconteceu. A chuva que costuma cair no mês das madres é daquelas bem fininhas, como orvalho, ou como se costuma dizer no Brasil: chuvisco. E aquela chuvarada, a do dia dezessete, foi um tipo de jorro desesperado, como um cano estourado (bem no meio da rua) por conta de tanto descaso e tamanha estupidez: o planeta está perdendo a paciência de uma vez!

“É o projeto da casa, é o corpo na cama

É o carro enguiçado, é a lama, é a lama.” (1)

E haja lama para limpar e lágrimas para chorar depois… A estupidez cobra um preço alto. Tentar ignorar as consequências do aquecimento do planeta não é uma opção inteligente. O futuro não está na construção de foguetes e muito menos em planos para colonizar outros planetas; também não está em abrigos construídos por e para biliardários.

Maio de dois mil e vinte e quatro vai entrar para a história do Sarre, na Alemanha, bem como já entrou para a história do Rio Grande do Sul, no Brasil, por conta das enchentes.

Eu, diante dos prognósticos do aquecimento dos oceanos, tento pensar de maneira otimista no futuro, porém…

“É o fundo do poço, é o fim do caminho

No rosto o desgosto, é um pouco sozinho.” (1)

Ainda mais porque sei que, para que haja mudanças efetivas, é necessário que as pessoas parem de votar em negacionistas da ciência. Assim que… Está difícil, não?

Divindades não têm nada a ver com fenômenos climáticos, os seres humanos são os únicos responsáveis pelo aquecimento do planeta e pelo desequilíbrio do ecossistema global. Não é castigo, é consequência. É o famoso “Colher o que se plantou.”

E se aprendemos alguma lição com as catástrofes? Pergunta besta!

Sigamos então com as águas de maio, que já foram as de março, com seus paus e pedras e carros arrastados, e que logo poderão ser águas de junho, julho, agosto, trazendo, por certo, muito desgosto, e que dificilmente serão apenas águas passadas como sol na peneira.

De fato, é necessário sermos realistas: o que hoje se considera catástrofe, algo extraordinário, fora do comum, tende a virar dura rotina.

“É pau, é pedra, é o fim do caminho

É um resto de toco, é um pouco sozinho.” (1)

(1) Trechos da canção Águas de Março, de Antonio Carlos Jobim.

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