Aprovado durante a ditadura do Estado Novo em 07 de dezembro de 1940, o Decreto-Lei nº 2848, mais conhecido como Código Penal, foi dividido em duas partes estruturais. Na primeira parte, a legislação se ocupa da aplicação da lei penal (no tempo, no espaço e em relação às pessoas), da teoria geral do delito e das consequências jurídicas do crime (teoria da pena).
Por sua vez, a parte especial contempla os crimes em espécie, isto é, as condutas criminalizadas por esse diploma, conforme o bem jurídico objeto da proteção normativa. Dessa forma, a parte especial se subdivide em títulos (crimes contra a pessoa; crimes contra o patrimônio, etc), os quais estão ou não segmentados por capítulos. Ilustrando, o título I da parte especial trata dos crimes contra a pessoa, sendo que o seu capítulo I se ocupa dos crimes contra a vida.
Vendo por essa perspectiva, pode-se cair no erro de considerar o Código Penal um primor de organização e sistematicidade. Ledo engano. Trata-se de um inequívoco entulho legislativo, devidamente regido pelo caos.
É que no ano de 1984, ainda sob os ditames da ditadura civil-militar, aprovou-se a Lei nº 7209, então responsável pela reforma parcial do Código Penal. Com isso, toda a parte geral do Código foi alterada. Entretanto, manteve-se a parte especial, em grande parte, com a redação que lhe fora dada em 1940. Em síntese, o Código Penal passou a ser dividido em partes anacrônicas, especialmente pelos 44 anos de diferença entre as respectivas reformas legislativas (do projeto original do Código à reforma parcial de 1984).
Para piorar o cenário, a reforma de 1984, por óbvio, foi anterior à promulgação da Constituição da República (1988), razão pela qual vários dos, à época, novos dispositivos são de duvidosa receptividade constitucional[i]. Além disso, embora tenha consagrado o chamado sistema trifásico para a feitura do cálculo da pena, a reforma parcial do Código Penal em 1984 não previu uma efetiva teoria da decisão penal, conferindo excessivo poder discricionário para o Judiciário elaborar uma sentença condenatória.
Essa crítica se mostra ainda mais pertinente durante a análise das chamadas circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal, dado que elas são fundamentais para o cálculo da pena (fixação da pena-base na primeira fase do processo de dosimetria), estabelecimento do regime inicial de pena, escolha da pena (no caso de preceito secundário alternativo) e substituição da pena (nos termos do artigo 44 do mesmo diploma legal).
Art. 59 do CP – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – as penas aplicáveis dentre as cominadas;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.
Mas o que são tais circunstâncias judiciais afinal de contas? Segundo Nilo Batista, essas circunstâncias não passam de uma cesta de detritos e de sobras do positivismo. É que, seja pela consagração do antidemocrático Direito Penal do autor (antecedentes, conduta social e personalidade do agente), seja pela imprecisão conceitual (culpabilidade, comportamento da vítima, etc), as circunstâncias judiciais também não possuem um valor matemático pré-definido, o que amplia, sobremaneira, a atuação discricionária do Judiciário.
Falando especificamente do comportamento da vítima nos crimes contra a dignidade sexual, durante anos, essa circunstância judicial tem sido analisada de forma distorcida por setores da doutrina e do Sistema Penal. Com isso, decisões judiciais, petições e livros de Direito têm servido como veículos de propagação de ideais ultrapassados e discriminatórios, com destaque para o machismo. Citarei alguns exemplos:
“A jovem de menor pudor pode induzir o agente de estupro pelas suas palavras, roupas e atitudes imprudentes; as prostitutas, marginais, também são vítimas em potencial. Tais comportamentos, embora não justifiquem a prática da conduta criminosa, diminuem a censurabilidade da conduta do autor do delito” Fernando Capez (Direito Penal. V.1, São Paulo: Saraiva, 2019, e-book, não paginado).
BITENCOURT, Cezar Roberto. Penas alternativas. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 52.): “[…] pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes”.
É objeto de dúvida se uma mulher, adulta e normal, pode ser fisicamente coagida por um só homem à conjunção carnal. Argumenta-se que bastam alguns movimentos da bacia para impedir a intromissão da verga. (….) Realmente, se não há uma excepcional desproporção de forças de forças em favor do homem, ou se a mulher não vem a perder os sentidos, ou prostrar-se de fadiga, ou a ser inibida pelo receio de maior violência, poderá sempre esquivar-se ao coito pelo recurso do movimento dos flancos. (Nelson Hungria. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 122 e 123).
Não se quer dizer que o mundano, por exemplo, vítima de crime sexual, não esteja protegido pela lei penal, nem mesmo que o agente deva ser absolvido, porém é óbvio que, nesse casso a pena do autor da infração penal não deve ser especialmente agravada. Diferentemente quando se tratar de pessoa recatada e tímida, colhida em seu recanto doméstico por um agressor sexual, é natural que a pena seja exasperada, pois a vítima não deu, de modo algum, margem ao ataque sofrido. (Guilherme de Souza Nucci. Manual de Direito Penal: parte geral e parte especial. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 473).
Essas citações mostram o quão distante o Direito Penal está de uma necessária democratização e aprimoramento científico. Não existe qualquer pesquisa científica que aponte a correlação entre a vestimenta da vítima e a prática do estupro. Não há nada que aponte a relação de causalidade entre a prática do estupro e a postura recatada ou não da vítima. Afinal, fosse assim, o Brasil não teria estatísticas criminais absurdas sobre o crescimento de casos envolvendo violência sexual contra crianças e vulneráveis[ii].
Ora, é a roupa usada pela criança que motiva o estuprador (não raro, um familiar) a agredir sexualmente esse tipo comum de vítima? É o recato de uma paciente anestesiada (e desacordada) que incentiva um profissional da saúde à prática do estupro?
Convenhamos, esse tipo de abordagem preconceituosa não pode mais ser admitida, sob pena de inversão de valores e de inequívoca violação ao brocardo de que a ninguém é dado beneficiar-se da própria torpeza.
No âmbito jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, em caso relacionado ao crime de homicídio, que “[…] o comportamento da vítima deve considerado neutro, se em nada contribuiu para o delito, não justificando o incremento da pena-base” (AgRg no REsp 1.687.304/AL, j. 18/09/2018).
Não me parece suficiente. Entendo que, enquanto não acontecer a reforma legislativa do Código Penal, o Judiciário deve considerar a circunstância judicial do comportamento da vítima como neutra e inaplicável, notadamente nos casos relacionados a crimes contra a dignidade sexual (fundamentalmente se a vítima for mulher).
“Nesse sentido, verifica-se que, a utilização do comportamento da vítima como uma circunstância judicial para atenuar a pena do acusado, nos crimes que violam a dignidade sexual da mulher, torna-se um meio de propagar violações contra os direitos da mulher. Além disso, tal circunstância comporta ainda o discurso de subordinação do gênero feminino ao masculino, revelando que a legislação não acompanha as transformações sociais relacionadas à paulatina dissolução dessa estrutura patriarcal, legitimando, assim a violência como uma forma de controlar a conduta, o corpo e os direitos da mulher” (Ashlei Beatriz Durante de Almeida; Jeniffer Thayline Nascimento Godoi; Bruna Azevedo de Castro. Crítica à valoração do comportamento da vítima como circunstância judicial favorável ao réu nos crimes de violência sexual. REVISTA DO INSTITUTO DE DIREITO CONSTITUCIONAL E CIDADANIA, LONDRINA, V. 6, N. 2, E043, JUL./DEZ. 2021. ISSN 2596-0075 | DOI: HTTPS://DOI.ORG/10.48159/REVISTADOIDCC.V6N2.E043 | P. 17 DE 20).
A coluna de hoje é dedicada à memória do amigo e ex-aluno Willian Cândido Barbosa (Willian Marinho), destacado profissional da imprensa local, falecido no último dia 20/5/2024. Que a família de Willian encontre o necessário conforto para seguir adiante.
Até a semana que vem.
[i] Em matéria de controle de constitucionalidade, o termo inconstitucionalidade (formal ou material) é adotado para se referir ao ato normativo aprovado após a promulgação da Constituição da República. Quando o ato normativo é anterior ao Texto Constitucional e com este não possui compatibilidade, diz-se que aquele ato normativo (lei, decreto, portaria, Constituição estadual, etc.) não foi recepcionado pela Constituição da República.
[ii] Fonte: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/10/22/cerca-de-100-criancas-e-adolescentes-de-ate-14-anos-sao-estupradas-por-dia-no-brasil-dizem-unicef-e-forum.ghtml