Ganhou repercussão internacional o caso envolvendo uma sobrinha que, supostamente, teria levado o tio, idoso e já falecido, para uma agência bancária, com o propósito de conseguir um empréstimo no valor de R$ 17 mil, mediante a ludibriação dos agentes da instituição financeira. Entretanto, diante da nítida ausência de sinais vitais do idoso, o negócio jurídico não foi concretizado.
O fato narrado acima, conforme informações prestadas pela mídia comercial, ocorreu na cidade de Bangu/RJ, no último dia 16/04/2024. O idoso se chamava Paulo Roberto Braga. Já a sobrinha atende pelo nome de Érika de Souza Vieira Nunes, que foi presa em flagrante, estando, atualmente, sob a cautela do Estado carioca, a título de prisão preventiva, contrariando os apelos de sua defesa, já que a presa é responsável por três crianças e seria também portadora de problemas psiquiátricos.
Segundo relatos prestados pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, Érika teria, antes do fatídico dia da morte de Paulo, conseguido realizar três empréstimos bancários com o tio. Esses empréstimos também estariam sob investigação da polícia.
Ainda que as imagens do circuito interno da agência bancária mostrem Paulo, visivelmente desfalecido ou desacordado, segue indefinido o momento exato da morte do idoso. A perícia não conseguiu cravar o momento exato da morte. Mais. Érika tinha consciência da morte do tio e mesmo assim insistiu na intenção de obter o empréstimo bancário?
Segundo as investigações até aqui desenvolvidas pela Polícia Civil, Érika teria cometido os crimes de furto mediante fraude e vilipêndio a cadáver. Será?
Uma gama de narrativas vai se somando sobre o caso. Considerando as limitações cognitivas sobre as várias nuances relacionadas ao caso, não custa reforçar que este texto levará em conta somente as informações obtidas e retransmitidas pela mídia comercial[i].
Assim, não tenho como analisar as condições em que os outros empréstimos ocorreram. Logo, partindo da hipótese de que Érika não matou o tio, mas que sabia da sua morte e que só não logrou êxito na obtenção do empréstimo em virtude da chocante incapacidade do idoso, pretende-se explicar ao público leitor da coluna a diferença entre os crimes de furto qualificado mediante fraude e de estelionato.
Nos termos do Código Penal, o crime de furto, na sua forma simples, inaugura o capítulo I, do Título II (dos crimes contra o patrimônio), da parte especial desse diploma legal, com a seguinte redação (caput): “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, com pena de reclusão de um a quatro anos e multa[ii].
Essa é a versão simples ou básica do crime de furto. Entretanto, fala-se em furto qualificado, quando o crime é praticado com o acréscimo de circunstâncias (objetivas ou subjetivas) que justificam uma maior reprovabilidade da conduta. Nessa linha, conforme estabelece o artigo 155, §4º, II, do Código Penal, o furto se tornará qualificado (portanto, mais grave e digno de maior reprovação), na hipótese de ser cometido por meio de fraude, sujeitando o criminoso a uma pena de reclusão de dois a oito anos e multa.
Fraude é uma circunstância objetiva que serve para distrair, enganar, ludibriar a vítima, facilitando o agir do criminoso, no sentido da subtração (retirada) do bem móvel objeto de desejo. O sujeito que usa da fraude (engodo, ardil) para furtar, em verdade, vale-se de um mecanismo para reduzir o grau de atenção da vítima. A vítima, portanto, uma vez enganada, sequer percebe que algo seu lhe foi retirado.
Ilustrando, imagine a situação em que alguém, travestido de algum personagem fictício (fiscal da prefeitura ou técnico da empresa fornecedora de internet), chega à casa da vítima e pede permissão para fazer alguma vistoria. Enganada, a vítima permite a entrada e não acompanha, com a devida atenção, o que o sujeito (suposto fiscal ou técnico) está fazendo de fato. Assim, valendo-se do cenário perfeito, o sujeito subtrai (retira, furta) bens móveis valiosos da vítima, saindo da casa dela sem qualquer tipo de embaraço ou impedimento.
Por sua vez, não existe crime de estelionato sem o emprego da fraude. Enquanto que o furto se torna qualificado com o emprego da fraude, o estelionato só existe se algum meio fraudulento for utilizado pelo criminoso.
Da leitura do artigo 171, caput, do Código Penal, o estelionato consiste em: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Para essa conduta, a lei estabelece a pena de reclusão de um a cinco anos e multa[iii].
Diferentemente do que ocorre no crime de furto mediante fraude, no estelionato, a vítima tem uma participação ativa, isto é, ela, uma vez enganada ou mantida em situação irreal, colabora com o criminoso. O estelionatário precisa que a vítima lhe conceda algo, diferentemente da vítima de furto, que sequer sabe da ação furtiva do agente.
Exemplificando, no caso de alguém que se passe por um personagem falso (fiscal da prefeitura ou técnica da empresa de telecomunicações) e pede acesso ao interior da casa de alguém, com a intenção de fiscalizar ou promover reparos, o estelionato ocorrerá se, ao invés de retirar pertences da vítima, o sujeito solicitar dela a remuneração pelo serviço que não prestou (já que nunca foi quem dizia ser). Assim, enganada, a vítima efetua o pagamento solicitado pelo estelionatário.
“Ao contrário dos delitos de subtração, nos quais a vítima suporta uma agressão unilateral por parte do autor, o estelionato pode ser bem definido como um crime de relação. Isto quer dizer que a conduta do autor apenas terá sucesso no tocante à obtenção da vantagem econômica indevida se houver, por parte da vítima, uma conduta ativa, consistente na prática de um ato de disposição patrimonial. Existe aqui, portanto, uma relação entre autor e vítima, na qual o primeiro se utiliza da fraude para viciar a vontade da vítima e esta última, em razão do erro que lhe acomete, entrega a coisa ou os valores ao estelionatário” (Reale Jr, 2023, p. 609).
Voltando ao caso de Érika e seu tio falecido tio Paulo, dentro da linha narrativa de que ela não o matou, mas tentou obter o empréstimo bancário em nome do tio, de maneira fraudulenta e, portanto, colocando a funcionária do banco em situação de erro, verifica-se que o fato mais se aproxima da figura típica do crime estelionato e, dado que o negócio jurídico não se realizou, na forma tentada (ou seja, o crime não se consumou por motivos externos ao desejo do criminoso).
Em se confirmando essa hipótese, considerando tratar-se de crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa, com pena branda e suscetível à suspensão condicional do processo, a decretação e a manutenção da prisão preventiva de Érika são injustificáveis.
Resta aguardar o seguimento das apurações e lamentar pelo ocorrido com o senhor Paulo e família.
Até a próxima semana.
Obras Citadas
Reale Júnior, M. (2023). Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva.
[i] Nesse sentido, vale conferir: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/04/20/corpo-de-tio-paulo-velorio-enterro.ghtml ; https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/04/16/mulher-leva-morto-em-cadeira-de-rodas-para-sacar-emprestimo.ghtml ; https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/04/19/policia-pede-quebra-de-sigilo-para-apurar-se-sobrinha-do-tio-paulo-pegou-emprestimo-em-outras-agencias.ghtml ; https://www.terra.com.br/diversao/caso-tio-paulo-apos-sobrinha-ser-agredida-na-prisao-defesa-entra-com-impactante-pedido-a-justica-saiba-qual,a3d2301487225c38761660c72b3655820gsn6yij.html ; https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/04/22/parentes-defendem-suspeita-de-levar-tio-morto-a-banco-no-rio.htm
[ii] Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
[iii] Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm