Com o costumeiro estardalhaço, o Congresso Nacional aprovou com sobras o Projeto de Lei nº 2253/2022 (procedente do Senado), com vistas à alteração da Lei de Execução Penal (Lei nº 7210/1984), especialmente no que diz respeito aos artigos 122 a 125, disciplinadores do direito à saída temporária dos presos que se encontram no regime semi-aberto.
Inicialmente, vale pontuar que se adotou o método progressivo do cumprimento de pena privativa de liberdade no Brasil. É dizer que o preso, conforme o preenchimento de requisitos objetivos e subjetivos exigidos pela legislação, progredirá do regime mais grave para o menos grave até que cumpra a sua pena. Assim ilustrando, se determinada pessoa inicia o cumprimento da sua pena no regime fechado, ela passará para o regime semi-aberto e deste para o aberto, até que sua obrigação penal para com o Estado esteja satisfeita.
Nos termos da legislação penal, o regime fechado é cumprido em estabelecimentos de máxima e média seguranças. Já o regime semi-aberto é cumprido em colônias agrícolas, industriais ou congêneres. Da sua parte, o regime aberto é realizado nas chamadas casas do albergado.
Assim, conforme o preso avança no cumprimento de sua pena, os rigores da execução penal vão se amenizando também. E isso ocorre por uma questão óbvia: dentre os objetivos da Execução Penal, destaca-se o da ressocialização, isto é, reinserção do condenado à sociedade, evitando que ele volte a cometer crimes. Quanto melhor o comportamento carcerário e maior o tempo de pena cumprido, progressivamente, eleva-se a confiança do Estado (e do entorno social) na pessoa do condenado.
É importante lembrar que não existem penas de caráter perpétuo em sociedades civilizadas. Com essa compreensão, o caráter finito da pena e o método progressivo do seu cumprimento servem de estímulo para que os condenados possam obedecer ao ordenamento jurídico. “A decisão baseada na relação custo-benefício consiste em: se os benefícios do comportamento forem maiores do que os custos, é racional agir”[i].
Aprovada ainda durante a égide da ditadura civil-militar, a Lei de Execução Penal, em sua redação originária, autorizava a concessão, via Juízo da Execução Penal, do benefício da saída temporária ao preso que se encontrasse no regime semi-aberto, sem vigilância direta ou ostensiva, nos casos de: visita à família; frequência a curso supletivo profissionalizante, ou de instrução do ensino médio ou superior; participação em atividades responsáveis pela facilitação do regresso do preso ao convívio social (redação originária do art. 122 da LEP – Lei de execução penal).
De acordo com o regime ditatorial da época, “as autorizações de saída (permissão de saída e saída temporária) constituem notáveis fatores para atenuar o rigor da execução contínua da pena de prisão”[ii].
Entretanto, sem qualquer fundamento científico, e em mais um arroubo populista e autoritário, a atual composição do Congresso Nacional (pós-democracia formal) decidiu restringir ainda mais a concessão da saída temporária ao preso do regime semi-aberto.
Parlamentares oportunistas, desinformados ou inconsequentes, mirando as eleições de outubro, devem ter salivado diante da notícia da morte criminosa do sargento Roger Dias da Cunha, em Belo Horizonte, por um preso que não se reapresentou ao Sistema Penitenciário, após ser beneficiado com a saída temporária[iii].
Esse tipo de parlamentar sabe que a grande maioria da população não lerá o Projeto de Lei em comento. Aliás, tenho segurança em dizer que mesmo estudantes e profissionais do Direito não possuem mais o hábito da leitura. Não tentam estudar um assunto antes de emitir opinião sobre ele. Há no Brasil, seguramente, uma massa alienada e manipulada, especialmente por pessoas dotadas de considerável poder financeiro e midiático, que a todo momento inundam as bizarras redes sociais com notícias falsas, incorretas ou manipuladoras. Com isso, o debate já nasce fracassado. Ou você é contra o crime e a favor da saída temporária ou você é defensor de bandido. É muito difícil e cansativo lidar com esse tipo de irracionalidade.
Em pesquisas recentes, o percentual de presos, beneficiados com a saída temporária, que retorna ao sistema penitenciário é superior a 95%[iv]. Mas o Congresso Nacional, ancorado no populismo penal, somado à preguiça intelectual, à falta de acesso à informação[v] e ao desinteresse pela leitura de parcela considerável da população, conseguiu emplacar a ideia contrária. Pior. Esse projeto de lei não conta com uma linha sequer sobre a procedência da verba orçamentária para o custeio dessa nova guinada autoritária. É dizer: o Estado gastará mais dinheiro público com o sistema penitenciário, mas não sabe de onde virá esse recurso.
Nos termos do projeto de lei nº 2253/2022, aprovado pelo Congresso Nacional, o artigo 122 da LEP seria inteiramente revogado. Além disso, esse dispositivo legal passaria a ostentar os seguintes parágrafos: “§ 2º Não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa. § 3º Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante ou de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes”[vi].
Encaminhado para sanção presidencial, o projeto recebeu veto parcial. Dessa forma, se o veto parcial não for derrubado pelo Congresso Nacional, será mantida a atual redação da LEP sobre o tema:
“Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:
II – freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;
III – participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
§ 1º A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2º Não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa. (Redação dada pela Lei nº 14.843, de 2024)
§ 3º Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante ou de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes. (Incluído pela Lei nº 14.843, de 2024)
Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos:
II – cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente;
III – compatibilidade do benefício com os objetivos da pena”.
Mesmo que o veto presidencial tenha buscado reduzir o estrago feito pelo Congresso Nacional, está-se diante de um grave e perigoso retrocesso, que tende a piorar, sobremaneira, o já caótico e inconstitucional sistema penitenciário brasileiro, inequívoco pai das principais organizações criminosas, gestadas que foram pela forma como o Estado realiza a execução penal[vii].
“O atual modelo prisional viola, constrange, subtrai e minora a dignidade humana do preso. Não há como se esperar que, após o cumprimento da pena, o egresso tenha perspectiva de ressocialização. Agora, se busca minar ainda mais o já tortuoso caminho do retorno social. Impedir que os presos convivam com seus familiares e que possam ser reintegrados à comunidade proporcionará ainda mais insatisfação, revolta e a certeza de que o Estado, em verdade, quer se ‘livrar’ dos presos”[viii].
Especula-se que o Congresso Nacional derrubará o veto parcial com sobras. Não duvido. Resta lamentar que tanta gente irresponsável consiga capitalizar politicamente com projetos nefastos e inconsequentes como o da saída temporária.
Como se tragédia não estivesse completa, o deplorável projeto restaurou a necessidade de exame criminológico como requisito para a progressão de regime[ix]. Mais um grave salto para trás. Mas sobre isso, falaremos em outra oportunidade.
Até a próxima semana e obrigado por prestigiar a coluna e o portal.
[i] Rosa, Alexandre Morais da. Guia do processo penal estratégico. Florianópolis: Emais editora, 2021, p. 39.
[ii] Tópico 127 da Exposição de motivos da lei de execução penal, disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7210-11-julho-1984-356938-exposicaodemotivos-149285-pl.html
[iii] Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2024/01/6784289-assassinato-de-sargento-aumenta-pressao-pelo-fim-das-saidinhas.html
[iv] Fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/02/20/95percent-dos-presos-da-saida-de-natal-de-2023-voltaram-entenda-como-funciona-o-beneficio.ghtml
[v] Tenho ciência de que boa parte da população, por uma série de fatores sociais e econômicos, não dispõe de acesso à internet e às melhores fontes de informação. A crítica não é dedicada a esse público.
[vi] Fonte: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2390894&filename=Tramitacao-EMS%202253/2022
[vii] Feltran, Gabriel. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[viii] Gonçalves, Antonio. Reflexões sobre o veto presidencial da lei das saidinhas. Jota. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reflexoes-sobre-o-veto-presidencial-da-lei-das-saidinhas-16042024
[ix] Fonte: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/12/sancionada-lei-que-restringe-saida-temporaria-vetos-permitem-visita-a-familia
Uma resposta
Texto expressivo, atual e informativo.
Super indico à acadêmicos e especialistas!