A Constituição Federal de 1988 estabelece que a família, o Estado e a sociedade devem proteger crianças e adolescentes contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. E o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, enfatizando que: “ É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” Mas será que esses comandos ecoam nos estabelecimentos de ensino e similares?
Toda vez que alguma situação de violência acontece em ambiente escolar, rapidamente os holofotes das mídias voltam-se para isso e os especialistas de plantão (re)iniciam infindáveis debates sobre o que motivou tal acontecimento ou o que poderia ter sido feito para evitá-lo. Porém, alguns dias ou semanas depois, as manchetes mudam para outro assunto polêmico e essa temática só será retomada se outro evento trágico voltar a ter alguma repercussão nacional e/ou mundial.
Esse ciclo da violência em escolas precisa ser compreendido e depois interrompido para que episódios de indisciplina e/ou agressões não sejam tidos como parte da rotina escolar. E ouso dizer que tudo se inicia no plano psicológico e/ou emocional do estudante. Aparentemente como uma reação a alguma violência sofrida ou presenciada, realisticamente ou supostamente, em que vítimas, agressores e testemunhas podem alternar os seus papéis periodicamente.
E é nesse contexto que a intimidação sistemática (bullying) se apresenta com regularidade, gerando desarmonia e sofrimento recorrentes, capazes de desencadear sintomas físicos e/ou psicológicos em todos os atores da comunidade escolar.
O Art. 1◦, §1◦, da Lei 13.185/15, nos traz a caracterização desse tipo de violência: “No contexto e para os fins desta Lei, considera-se intimidação sistemática (bullying) todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.”
No Art. 2◦, e em seu parágrafo único, da Lei 13.185/15, encontramos as formas de bullying expressas em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e ainda: a) ataques físicos; b) insultos pessoais; c) comentários sistemáticos e apelidos pejorativos; d) ameaças por quaisquer meios; e) grafites depreciativos; f) expressões preconceituosas; g) isolamento social consciente e premeditado e h) pilhérias. E ocorrerá o cyberbullying quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos, vídeos (deepfake) e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial.
Em seu Art. 3◦, a Lei 13.185/15 classifica os tipos de bullying de acordo com as ações praticadas: a) verbal (insultar, xingar e apelidar pejorativamente); b) moral (difamar, caluniar, disseminar rumores); c) sexual (assediar, induzir e/ou abusar); d) social (ignorar, isolar e excluir); e) psicológica (perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar.
Os participantes do bullying podem revezar-se sendo vítimas, agressores ou testemunhas. Durante a vida escolar os alunos podem viver alternância dos papéis envolvidos na prática do bullying. E isso pode ocasionar consequências prejudiciais: baixa autoestima; baixo rendimento escolar; evasão escolar; agressividade e desejo de vingança; estresse, ansiedade e fobias; dificuldade de relacionamento; depressão e ideias suicidas.
Embora não haja regra científica para identificação de uma vítima de bullying, alguns comportamentos podem indicar que o aprendente esteja nessa circunstância: não tem vontade de ir à escola; apresenta baixo rendimento escolar; volta da escola com roupas e livros rasgados; isola-se dos amigos e da família; aparenta estar sempre triste, deprimido, ansioso ou aflito; fica agressivo sem motivos aparentes; não gosta de si mesmo e não se valoriza.
O ECA foi alterado pela Lei 13.431/17 (que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência) e em seu Art. 4◦, II, a), reconhece o bullying como violência psicológica: “qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional;”
O Código Penal foi alterado pela Lei 14.811/24 (que institui medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares ) acrescentando o Art. 146-A: “Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais…”
Importante ressaltar que a jurisprudência pátria (conjunto de decisões de tribunais) tem responsabilizado pais e colégios de modo objetivo e solidário diante da constatação de bullying em estabelecimento escolar. Com os seguintes fundamentos: a) nos termos da lei 13.185/2015, a instituição de ensino é responsável pelo dever de guarda e deve proporcionar um ambiente saudável aos seus alunos, perpetrando medidas de conscientização e combate ao bullying; b) a relação jurídica existente entre a autora e a instituição de ensino é de natureza consumerista, pelo que a responsabilidade do requerido pelos danos oriundos de defeitos na prestação de seus serviços é objetiva, nos moldes do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor; c) por força do art. 932, I e 933 do Código Civil, os pais respondem objetivamente por atos ilícitos que venham a ser praticados pelos filhos menores de 18 anos e d) os transtornos, frustrações e abalos psicológicos oriundos da prática de bullying nas dependências da escola ultrapassam a esfera do mero aborrecimento e adentram ao campo do dano moral.
Embora tenhamos citado vários dispositivos legais sobre bullying, as escolas têm autonomia para a construção de regras para coibir essa violência em seu Regimento Interno listando deveres para os estudantes e seus responsáveis legais e/ou confeccionando protocolos de combate a violências.
Em relação ao corpo discente podemos ter deveres de: preservar e respeitar bens (dos colegas); comportar-se adequadamente; exercitar boa convivência, respeito, companheirismo; respeitar as diferenças individuais. Bem como a proibição de: desrespeitar colegas com grosserias, palavrões, gestos obscenos ou agressões físicas; cometer ou incitar os colegas a cometerem atos de indisciplina; praticar atos ofensivos a moral e aos bons costumes; ser conivente ou omisso em relação à destruição de bem particular; ser conivente ou omisso a condutas indevidas para com colegas.
Para os pais e/ou responsáveis, estes devem participar assiduamente da vida escolar de seu filho de forma consciente, construtiva e disciplinada. E, a título de exemplo, pode-se não permitirtratar de questões disciplinares ou de relacionamento entre colegas do colégio diretamente com estudantes que não sejam o próprio filho, devendo, nesses casos, procurar os Serviços Técnicos Pedagógicos Especializados.
E o que fazer para prevenir e enfrentar o bullying, além da edição de normas legais, de projetos institucionais escolares, de recomendações do Ministério Público Estadual, de campanhas publicitárias e de orientações de profissionais da área da saúde e do Direito Educacional?
Que tal simplificarmos para uma mudança de comportamento de todos os que estão comprometidos com as dinâmicas de ensino e aprendizagem, dentro e fora das escolas?
A prática frequente da empatia pode ser uma valiosa atitude para a prevenção e o enfrentamento ao bullying. Ela consiste em colocar-se no lugar dos outros, buscando entender seus sentimentos e perspectivas. E, com isso, pode-se desenvolver comportamentos respeitosos e tolerantes em relação aos que convivem conosco. “Capacidade psicológica para sentir o que sentiria uma outra pessoa caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela. Consiste em tentar compreender sentimentos e emoções, procurando experimentar de forma objetiva e racional o que sente outro indivíduo.” (PORTALDORH, 2024)
A empatia pode auxiliar na criação e manutenção de um ambiente escolar seguro e acolhedor para todos: a) promovendo o entendimento (respeito mútuo para compreender as emoções e experiências dos colegas), permitindo o reconhecimento de indicativos de que alguém está sendo alvo de bullying; b) encorajando a intervenção (ao se ver na condição de sofrimento do outro ajudar torna-se mais fácil); c) criando um ambiente/rede de apoio (para que os alunos sintam-se seguros e busquem apoio quando necessário); d) fomentando a inclusão (para reduzir o isolamento social e as ocorrências de bullying); e) desenvolvendo habilidades sociais (para que os estudantes sejam mais compassivos e responsáveis); f) estimulando a resolução pacífica de conflitos (redução da agressividade com o entendimendo de diferentes pontos de vista em uma situação de desacordo em que juntos encontrem soluções pacíficas e respeitosas); g) fortalecendo a autoestima da vítima (que se sente acolhida e compreendida).
Empatia significa sentir-se próximo e identificar-se com outra pessoa. Trata-se de ouvir os outros e compreender seus problemas e sentimentos. Para ser empático é essencial reconhecer: que cada pessoa é única, que é necessário escutar antes de falar, que a linguagem corporal é importante, que os “julgamentos” devem ser abandonados e que a empatia não é fingimento, é compatibilidade.
Embora não existam estratégias ideais para o desenvolvimento da empatia nas escolas, algumas ações podem ser úteis nessa construção de um espaço educacional livre do bullying: a) estimular a reflexão sobre os diferentes olhares por meio de debates e atividades em sala de aula; b) encenar situações de bullying para que os estudantes vivenciem o que é sentido pela vítima, pelo agressor e pela testemunha; c) utilizar livros paradidáticos que abordem o tema; d) divulgar constantemente informações sobre o bullying e seus efeitos.
Na prevenção e combate ao bullying podemos utilizar a regra de ouro da Comunicação Não-violenta que, segundo ROSENBERG (2006), é criar relacionamentos interpessoais baseados em respeito mútuo, compaixão e cooperação.
Sendo assim, é indispensável que os alunos, os pais e os educadores se envolvam mutuamente para criar um ambiente escolar seguro, inclusivo e sem bullying. Isso requer um contínuo esforço por meio de programas educacionais, políticas e práticas que valorizem a empatia como uma qualidade indispensável para o bem-estar e o sucesso de todos os envolvidos na comunidade escolar.
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Parabéns! Dr. Cláudio Santos.