terça-feira, 15 de outubro de 2024

A RELATIVIZAÇÃO DA VULNERABILIDADE DA VÍTIMA DE ESTUPRO E A LÓGICA INVERTIDA ADOTADA PELO STJ

Publicado em 20 de março de 2024, às 11:43
Fonte: Paulo Thiago Fernandes Dias – Advogado. Professor universitário (CEUMA e UEMASUL). Pesquisador-líder do grupo de pesquisa “Instituições do Sistema de Justiça e Dignidade da Pessoa Humana” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5436723442142911). Expert na comunidade jurídica “Criminal Player”. Doutor em Direito Público (PPGD/UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PPGCRIM/PUCRS). Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (UGF). Bacharel em Direito (ICJ/UFPA). Instagram: @paulothiagof
Young beautiful girl hiding face with hands over grey background. Copy space. Imagem: FreePik Premium.

Contrariando sua própria jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, durante o julgamento do Agravo Regimental do Agravo em Recurso Especial nº 2.389.611, ocorrido em 12 de março de 2024, abriu uma exceção à presunção absoluta de vulnerabilidade, conforme positivado pelo artigo 217-A do Código Penal, que considera estupro de vulnerável o fato de alguém “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, sujeitando-se a uma pena privativa de liberdade de 8 a 15 anos. Além disso, esse se qualifica como hediondo, invocando o tratamento penal e processual penal mais gravoso conferido pela Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos).

Considerando que os votos dos ministros não foram divulgados ainda, este texto levará em conta o vídeo do julgamento disponível no canal do youtube do Tribunal Superior[i] e também por portais de notícias jurídicos[ii].

Nos termos da denúncia apresentada pelo Ministério Público, à época dos fatos, a vítima tinha 12 anos de idade, enquanto que o denunciado contava com 20 anos. Um “relacionamento” amoroso teria se iniciado. O denunciado costumava buscar a vítima na escola. Ela, segundo a denúncia, abandonou os estudos. Na sequência, a gravidez veio à tona.

Em primeira instância, o denunciado foi condenado pela prática do crime de estupro de vulnerável à pena de 11 anos e 3 meses de reclusão, devendo iniciar a execução da pena no regime fechado. Em grau de recurso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais absolveu o denunciado, diante da suposta ocorrência do erro de proibição[iii]. Na sequência de recursos interpostos, o caso chegou ao STJ.

O Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator do recurso junto ao STJ, estabeleceu a seguinte dicotomia: i) Pessoa com menos de 14 anos não possui capacidade alguma para anuir sobre a ocorrência de ato sexual versus ii) a preservação dos interesses da criança gerada pelo “relacionamento” mantido entre a vítima e o denunciado.

Assim, levando à efeito a chamada “ponderação à brasileira”[iv], o ministro relator afastou a ocorrência de estupro no caso, por entender que a vida transcende o Direito, isto é, caso se mantivesse a condenação por estupro, mais prejuízo seriam causados aos envolvidos, especialmente à criança gerada do ato sexual praticado por uma pessoa com 20 anos de idade e uma adolescente com 12 anos (à época dos fatos).

Reynaldo Soares foi acompanhado dos ministros Ribeiro Dantas e Joel Ilan Paciornik. Em sentido contrário, pelo reconhecimento da presunção de vulnerabilidade encartada no artigo 217-A do Código Penal, logo, pela reafirmação da prática de estupro, votaram a ministra Daniela Teixeira e o ministro Messod Azulay.

Sobre o voto da Ministra Daniela Teixeira, além de refutar a alegação de erro de proibição, ela assentou que a gravidez advinda do estupro configurava uma nova agressão sofrida pela vítima, longe de configurar qualquer juízo de amenidade para a situação do denunciado. A ministra destacou que:

“Não se pode, racionalmente, aceitar que um homem de 20 anos de idade não tivesse a consciência da ilicitude de manter relação sexual com uma menina de 12 anos. Não se trata, o agressor, do ‘matuto’ exemplificado nas doutrinas de Direito Penal, ou do ermitão que vive totalmente isolado da sociedade, sem qualquer acesso aos meios de comunicação ou à sociedade. Ademais, aceitar a incidência de tal excludente de tipicidade sem comprovação inequívoca de seus requisitos, em especial em crimes de natureza sexual contra crianças e adolescentes, pode resultar na definição da responsabilidade penal do ato a partir de uma avaliação subjetiva do agente sobre o corpo da vítima, o que é inadmissível dentro da doutrina constitucional da proteção integral (artigo 227 da Constituição Federal)”[v].

Há que se lamentar o resultado do julgamento, pelo STJ, do Agravo Regimental do Agravo em Recurso Especial nº 2.389.611, sob comento. Trata-se de um manifesto retrocesso. Uma afronta à própria jurisprudência consolidada pelo tribunal, especialmente a partir da tese firmada no Recurso Especial Repetitivo 1.480.881. Enuncia o verbete de súmula 593 do STJ que “O crime de estupro de vulnerável configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente[vi].

A ilação construída pelos ministros Fonseca, Dantas e Paciornik é perigosa. Especialmente se levarmos em conta o número absurdo de casos conhecidos de crimes dessa natureza, consoante dados do 17º Anuário de Segurança Pública[vii].

Relativizar a vulnerabilidade de uma pessoa com menos de 14 anos de idade, por conta de suposta preocupação com o futuro de uma família surgida de um crime hediondo, tem o mesmo efeito de colocar a carroça na dianteira dos bois. Com outros dizeres, a 5ªT do STJ deixou o principal de fora do resumo: os votos vencedores deixaram os interesses da titular do bem jurídico violado em segundo plano.

Quando se fala em vulnerabilidade absoluta, busca-se romper com a lamentável e violenta cultura do estupro[viii], positivada que foi na redação originária do Código penal na década de 1940. Época em que o Direito e a legislação penal não se voltavam à proteção da dignidade humana, mas à preservação dos costumes. No contexto de 1940, discutia-se sobre a existência ou não de violência no ato sexual ocorrido entre uma adolescente com menos de 14 anos e uma pessoa com mais de 18 anos de idade.

Com base nessa mentalidade (informadora e mantenedora da cultura do estupro), a vítima desaparece por completo. Ela se torna um ser secundário. Não é a sua dignidade o objeto de proteção. Não importa se, após ser estuprada por uma pessoa mais velha, ela engravidou. Não importa se essa vítima deixou estudos. É preciso manter as aparências de uma suposta sociedade conjugal ou união que, conforme o caso sob análise, não perdura mais.

Uma pessoa com menos de 14 anos de idade não tem capacidade para anuir ou validar um ato sexual. É estupro. Um crime grave cometido contra uma pessoa vulnerável por questões de desenvolvimento físico e mental, por questões econômicas, por questões sociais e também culturais.

“Estes achados reforçam a importância da escola como espaço de proteção de crianças em situação de vulnerabilidade. O relatório Child Maltreatment 20197, produzido pelo Child Welfare Information Gateway, mostrou que os profissionais que mais reportam episódios de maus-tratos e abusos contra crianças nos EUA são aqueles vinculados à educação (21%), seguidos das polícias e demais agentes da lei (19,1%), e os serviços de saúde (11%). Embora não tenhamos pesquisas sobre o tema no Brasil, é comum ouvir relatos de profissionais de educação, ou mesmo de policiais, que indicam que foi o professor ou a professora que notou diferenças no comportamento da criança e primeiro soube do abuso. Assim, a escola tem um papel fundamental para identificar episódios de violência, mas, principalmente, em fornecer o conhecimento necessário para que as crianças entendam sobre abuso sexual e sejam capazes de se proteger (Du Bois, Miley, 2005; Delport, 2010). Vale destacar que é comum que a criança não tenha sequer capacidade de reconhecer o abuso sofrido, seja pela falta de conhecimento sobre o tema ou pelo vínculo com o agressor. Isto porque é compreensível que a criança tenha algum sentimento de amor ou mesmo lealdade pelo agressor, já que em geral o abuso é praticado por pais, padrastos, avôs e outros familiares (Conte, Simon, 20218). Além disso, o abusador tende a manipular a criança com ameaças ou subornos, o que garante o silêncio da vítima (ibidem). Por fim, o sentimento de culpa ou mesmo vergonha costuma estar presente na criança, que acaba por não revelar nada a familiares”[ix].

Pra piorar, ainda que somente o Agravo Regimental do Agravo em Recurso Especial nº 2.389.611 tenha causado a repercussão observada recentemente, no ano de 2021, em caso semelhante ao abordado neste texto, o STJ decidiu também pela relativização da vulnerabilidade da vítima.

RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DENÚNCIA REJEITADA PELO JUÍZO DE ORIGEM. RECEBIMENTO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. VÍTIMA COM 12 ANOS E RÉU COM 19 ANOS AO TEMPO DO FATO. NASCIMENTO DE FILHO DA RELAÇÃO AMOROSA. AQUIESCÊNCIA DOS PAIS DA MENOR. MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DA ADOLESCENTE. DISTINGUISHING. PUNIBILIDADE CONCRETA. PERSPECTIVA MATERIAL. CONTEÚDO RELATIVO E DIMENSIONAL. GRAU DE AFETAÇÃO DO BEM JURÍDICO. AUSÊNCIA DE RELEVÂNCIA SOCIAL DO FATO.

1. A Terceira Seção, no julgamento do REsp 1.480.881/PI, submetido ao rito dos recursos repetitivos, reafirmou a orientação jurisprudencial, então dominante, de que é absoluta a presunção de violência em casos da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 anos.

2. A presente questão enseja distinguishing quanto ao acórdão paradigma da nova orientação jurisprudencial, pois, diante dos seus componentes circunstanciais, verifica-se que o réu possuía, ao tempo do fato, 19 anos de idade, ao passo que a vítima, adolescente, contava com 12 anos de idade, sendo que, do relacionamento amoroso, resultou no nascimento de um filho, devidamente reconhecido, fato social relevante que deve ser considerado no cenário da acusação.

3. “Para que o fato seja considerado criminalmente relevante, não basta a mera subsunção formal a um tipo penal. Deve ser avaliado o desvalor representado pela conduta humana, bem como a extensão da lesão causada ao bem jurídico tutelado, com o intuito de aferir se há necessidade e merecimento da sanção, à luz dos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade” (RHC 126.272/MG, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 1/6/2021, DJe 15/6/2021).

4. Considerando as particularidades do presente feito, em especial, a vontade da vítima de conviver com o recorrente e o nascimento do filho do casal, somados às condições pessoais do acusado, denotam que não houve afetação relevante do bem jurídico a resultar na atuação punitiva estatal.

5. “A manutenção da pena privativa de liberdade do recorrente, em processo no qual a pretensão do órgão acusador se revela contrária aos anseios da própria vítima, acabaria por deixar a jovem e o filho de ambos desamparados não apenas materialmente, mas também emocionalmente, desestruturando e entidade familiar constitucionalmente protegida” (REsp n. 1.524.494/RN e AREsp 1.555.030/GO, Relator Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 18/5/2021, DJe 21/5/2021).

6. Recurso especial provido. Restabelecimento da decisão que rejeitou a denúncia[x].

Assim, de exceção em exceção, o Superior Tribunal de Justiça, sem a adequada e transdisciplinar abordagem da matéria, vai resgatando (e consolidando) a perigosa presunção relativa da vulnerabilidade da vítima menor de 14 anos de idade, nos termos do artigo 217-A do Código Penal.  

  Até a semana que vem.


[i] Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=YlywnMoDmj8

[ii] Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/403318/stj-afasta-estupro-em-relacao-de-menina-de-12-anos-com-homem-de-20

[iii] O erro de proibição está previsto no artigo 21 do Código Penal brasileiro e pode redundar na isenção de pena, se a ignorância do acusado sobre a proibição normativa fosse inevitável. Em apertada síntese, trata-se do caso de alguém desconhecer a ilicitude de determinado fato, praticando-o, portanto, guiado pela sua ignorância. De acordo com Miguel Reale, “o erro, todavia, pode incidir também sobre a permissividade de uma determinada conduta, desconhecendo o sujeito a proibição jurídica que lhe era possível apreender” (REALE JÚNIOR, Miguel. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraivajur, 2023, p.120-121). Considerando que eu não tive acesso aos autos do julgamento da apelação pelo TJ/MG, fica a dúvida sobre qual proibição residia a ignorância ou o erro do denunciado.

[iv] Fonte: VIEIRA DE OLIVEIRA, P. E.; DE OLIVEIRA COSTA, N. A. Ponderação à brasileira: a racionalidade da decisão judicial em Robert Alexy como desafio do Estado Constitucional Democrático. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 1, n. 1, 18 dez. 2018.

[v] Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/403318/stj-afasta-estupro-em-relacao-de-menina-de-12-anos-com-homem-de-20

[vi] Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/267909/stj-aprova-sumula-sobre-estupro-de-vulneravel”

[vii] Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança

Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em:

https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 19/03/2024

[viii] Sobre o assunto, recomenda-se o seguinte trabalho: Luana Gabrielly de Freitas Almeida; DIAS, Paulo Thiago Fernandes; ZAGHLOUT, Sara Alacoque Guerra. A ANTIDEMOCRÁTICA CULTURA DO ESTUPRO In: Direito e Arte: ensaios para a defesa da democracia no Brasil.1 ed.PONTA GROSSA: AYA, 2023, v.1, p. 90-100. Download gratuito: https://ayaeditora.com.br/Livro/29433/

[ix] Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança

Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em:

https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 19/03/2024, p. 156.

[x] Fonte: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.977.165 – MS (2021/0384671-5). Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202103846715&dt_publicacao=25/05/2023. Brasília, 2023. Acesso em: 18 de mar. 2024.

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