Consta do noticiário, que o Estado do Alabama (EUA) executou Kenneth Smith à pena de morte no dia 25/01/2024, por ter assassinado em 1988, por dinheiro, Elizabeth Sennett, de forma cruel (esfaqueamentos e espancamento). A execução de Elizabeth fora encomendada pelo seu marido, o pastor Charles Sennett, que cometeu suicídio após a descoberta de sua trama macabra[i].
Ainda que o uso da pena de morte esteja experimento considerável declínio recentemente nos EUA, tendo sido abolida em 23 estados dos EUA e se encontrando suspensa em outros 06, a execução de Kenneth acrescentou novos elementos ao debate[ii]. É que o Estado do Alabama inovou no método utilizado para a eliminação da vida de Kenneth.
Segundo noticiado, após anos esperando pela pena capital no corredor da morte, Kenneth foi submetido ao método de execução pela injeção de produtos químicos letais. Basicamente, um envenenamento. Os executores, portanto, possuíam determinado intervalo de tempo para o cumprimento da ordem de execução. Porém, durante todo o período em que esteve preso a uma maca na denominada “câmara da morte” do Centro Correcional Holman, nenhuma veia de Kenneth foi encontrada, frustrando a sua morte, em que pese as várias incisões sofridas[iii].
Essa tentativa de execução de Kenneth ocorreu em novembro de 2022. Assim, por conta do fracasso relatado, o Estado do Alabama modificou o método de execução, determinando que Kenneth se submetesse ao então inédito procedimento da asfixia por nitrogênio. Com isso, por intermédio de uma máscara, Kenneth foi obrigado a inalar nitrogênio, morrendo, de forma cruel, por hipóxia[iv].
Após se debater por, aproximadamente, vinte minutos, Kenneth foi a óbito, contrariando as alegações das autoridades do Alabama, no sentido de que o método da asfixia por nitrogênio se classificaria como indolor. A propósito, conforme havia sido alertado por especialistas antes mesmo da execução de Kenneth, a máscara usada no executado não é absolutamente fechada, razão pela qual a passagem de oxigênio não é interrompida durante o processo de asfixia[v].
ONU, União Europeia e outras instituições ligadas à defesa dos direitos humanos repudiaram o método de execução empregado pelo Estado do Alabama para a execução de Kenneth[vi].
Não se olvida que a Constituição da República Federativa do Brasil veda a pena de morte, bem como outras sanções penais consideradas infamantes, ultrajantes, desumanas e cruéis[vii]. Este texto não busca abordar uma eventual saída normativa para a adoção pelo Brasil da pena de morte. Nada disso. Busca-se pavimentar o caminho para que o debate sobre tema tão relevante não se perca em pedras, buracos ou imperfeições existentes no terreno. Precisamos aprender (ou seria reaprender) a dialogar sobre temas sensíveis.
Lendo sobre a execução de Kenneth, fui imediatamente tomado pelas lembranças da leitura do pequeno, porém excelente livro “o último dia de um condenado” de Victor Hugo (versão de bolso da L&PM de 2017). Nessa obra, Victor Hugo escreve sobre as últimas horas de vida (se é que se pode chamar isso de vida) de um sujeito sabidamente condenado a morrer.
A prisão, conforme retrata por Victor Hugo, funcionava como medida acautelatória, no sentido da preservação do réu até que a condenação à pena máxima ou final fosse confirmada. Logo, quando não mais houvesse possibilidade jurídica de discutir a condenação, o réu ficava à mercê do Estado, preso, enquanto se preparasse todo o ritual da execução. A prisão, portanto, não teria sido inicialmente utilizada na história como pena principal:
“Até fins do século XVIII a prisão serviu somente aos objetivos de contenção e guarda de réus, para preservá-los fisicamente até o momento de serem julgados ou executados. Recorria-se, durante esse longo período histórico, fundamentalmente, à pena de morte, às penas corporais (mutilações e açoites) e às infamantes” (Bittencourt, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. São Paulo: Saraivajur, 2017. E-book. Posição 27).
Esse é justamente o cenário inicial do livro de Victor Hugo, cujo narrador principal – o próprio condenado – discorre, pormenorizadamente, sobre suas angústias, inquietações, arrependimentos, medos e revolta. “Agora sou cativo. Meu corpo está agrilhoado num cárcere, meu espírito aprisionado numa ideia. Uma horrível, sangrenta, implacável ideia! Não tenho mais senão um pensamento, uma convicção, uma certeza: condenado à morte!” (Hugo, Victor. O último dia de um condenado. Porto Alegre: L&PM, 2017, p. 5).
Coincidentemente, estou lecionando Teoria da Pena para duas turmas neste primeiro semestre de 2024, no curso de Direito da UNICEUMA/Imperatriz. Discussão obrigatória é aquela consistente sobre os fins da pena, o que nem sempre é uma missão fácil, haja vista a noção, ao que parece, generalizada, sobre a necessidade do incremento de punições severas contra pessoas condenadas pela prática de infração penal.
Compreensão geral essa que muitas vezes vem associada à sensação de insegurança e à exploração ostensiva, maniqueísta e sensacionalista de casos criminais pela imprensa (seja ela a tradicional-comercial ou a digital-vulgar exercida pelos caçadores de cliques nas ditas redes sociais).
Conforme pesquisa de opinião pública realizada e divulgada em 2022 pelo IPEC, 42% da população brasileira seriam favoráveis à pena de morte no Brasil[viii]. Como se chegou a esse quantitativo? Trata-se de um percentual elevado e para o qual não existe uma resposta simples, dado que muitas informações costumam ser negligenciadas nesse debate.
A pena de morte foi justificada, durante muito tempo, pelas chamadas teorias retribucionistas ou absolutas da pena. É que tais teorias olham para o passado (crime) a fim de justificarem o método de apenamento mais proporcional e vinculado à noção de justiça. Ou seja, não existe, por certo, uma ideia de pena como instrumento de vingança, mas sim de restauração da justiça. Afinal, a pena é uma retribuição, cuja justificação só estará presente, se ela for proporcional ao mal praticado pelo condenado, for igualitária e não se prestar a fins preventivos. É dizer: a pena não pode coisificar o apenado.
“O princípio retribucionista assenta-se em duas bases: o reconhecimento de que existe a culpabilidade, que ademais pode ser medida e graduada; e o de que possam se harmonizar a gravidade da culpabilidade e a da pena, de sorte que esta seja aplicada e executada como algo merecido (seja na visão do indivíduo, seja na perspectiva da comunidade)” (Gomes, Luiz Flávio; García-Pablos de Molina, Antonio. Direito Penal. V. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 661).
Quando se fala nessa proporcionalidade almejada pelas teorias retribucionistas, ela se limita a retirar do condenado o direito de usufrui do mesmo bem jurídico que ele retirou da vítima do crime? Ou está-se referindo ao método de execução: se matou de um jeito, deve ser executado da mesma forma? Como garantir que esse tipo de punição (pena de morte) seja aplicado ao condenado vindo de qualquer classe social, se a atuação do Sistema Penal, invariavelmente, é seletiva? “Segundo o DPIC, desde 1976 foram executados 296 negros acusados de matar vítimas brancas. No mesmo período, apenas 21 brancos foram executados pela morte de vítimas negras” (BBC, 2021)[ix]. Em países marcados pela desigualdade, com histórico de injustiças sociais, raciais e econômicas, seria possível evitar que pessoas inocentes sejam condenadas à pena de morte? “Nos Estados Unidos, 62% dos 12 milhões de cidadãos encarcerados nas jails são réus, e o fator preponderante para a sua manutenção em prisão é econômico” (Fassin, Didier. Punir: uma paixão contemporânea. Belo Horizonte: Âyiné, 2021, p. 64).
As teorias retribucionistas sofrem críticas científicas acertadas. Seja por estar associada à ideia de que a imposição de pena teria o potencial para restaurar algo (especialmente em relação à vítima), seja pelo seu fundamento principal residir na noção de que o crime seria resultado do exercício da autodeterminação do criminoso, enquanto pressuposto da culpabilidade:
“Assim, a pena como retribuição do crime se fundamenta num dado indemonstrável: o mito da liberdade pressuposta na culpabilidade do autor. A impossibilidade de demonstrar a liberdade pressuposta na culpabilidade determinou uma mudança na função atribuída a culpabilidade no moderno direito penal: a culpabilidade perde a antiga função de fundamento da pena, que legitima o poder punitivo do Estado em face do indivíduo, para assumir a função atual de limitação da pena, que garante o indivíduo contra o poder punitivo do Estado – uma mudança de sinal dotada de óbvio significado político” (Santos, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014, p. 625.
Diante disso, questões outras poderiam ser levantadas. Inclusive aquelas de ordem econômica, já que uma condenação à pena capital costuma levar anos para ser, finalmente, executada. É dizer: entre a condenação e a execução da pena, o condenado fica anos nos tais corredores da morte. Kenneth, por mais grave que tenha sido o crime por ele cometido, esperou sua sentença de morte ser executada do final dos anos 1990 até o ano de 2022, quando a primeira tentativa de execução fracassou.
Enquanto aguardava o julgamento de seu apelo contra a execução via asfixia, Kenneth relatou a jornalistas: “sinto náuseas o tempo todo. Os ataques de pânico acontecem regularmente… Isso é apenas uma pequena parte daquilo com que tenho lidado diariamente. Tortura, basicamente” (G1, 2024)[x].
As declarações de Kenneth, em muito, aproximam-se da ficção, o que só reforça a riqueza da obra de Victor Hugo (O último dia de um condenado – p. 76): “Oh! Mas o que é então essa agonia de seis semanas e esse estertor de todo dia? O que são as angústias dessa jornada irreparável, que passa tão lentamente e tão depressa? Que é essa escalada de tortura que termina no cadafalso? Aparentemente isso não é sofrer. Afinal, não são as mesmas convulsões quando o sangue se esvai gota a gota, ou quando a inteligência se apaga pensamento após pensamento?”.
Enfim, quem poderia imaginar que, em pleno século XXI, ainda se estaria discutindo a brutalidade ou a consagração de uma pena de morte obtida mediante tortura num dos Estados da maior potência bélica do planeta?
Até a próxima semana.
[i] Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/detento-e-executado-com-gas-nitrogenio-em-prisao-nos-eua-marcando-1o-uso-do-novo-metodo-no-pais/
[ii] Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2024/01/25/pena-de-morte-retrocede-lentamente-nos-estados-unidos.htm
[iii] Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4q930n1kdo
[iv] Fonte: https://exame.com/mundo/o-que-e-asfixia-por-nitrogenio-eua-testa-novo-metodo-de-execucao-em-pena-de-morte/
[v] Fonte: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/01/28/especialista-em-asfixia-por-nitrogenio-deu-parecer-contrario-ao-uso-do-metodo-para-execucao-de-preso-nos-eua.ghtml
[vi] Fonte: https://www.jn.pt/1734008103/onu-e-ue-criticam-execucao-por-asfixia-com-azoto-nos-estados-unidos/
[vii] Fonte: XLVII do art. 5º da CR – “não haverá penas: a) de morte, salvo no caso de guerra declarada, nos termos do seu art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”.
[viii] Fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/09/13/ipec-49percent-sao-contra-a-pena-de-morte-no-brasil-42percent-se-dizem-favoraveis.ghtml
[ix] DPIC significa Death Penalty Information Center (Centro de Informações sobre a Pena de Morte). Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55963074
[x] Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/01/23/o-que-diz-preso-que-deve-passar-por-1a-execucao-por-asfixia-com-nitrogenio-nos-eua.ghtml
2 respostas
Simplesmente, uma abordagem cujo conteúdo é muito enriquecido de informações históricas, jurídicas, mas, ainda, assim, possível de ser compreendida por diferentes leitores. Parabéns, ao autor do texto. Itamar Dias Fernandes
Muito bem colocada suas palavras, parabéns pelo rico texto publicado por você, parabéns pelo seu conhecimento na area dos advogados.