Prefácio de Edmilson Sanches para o livro “Vila Poesia”, do escritor maranhense Quincas Vilaneto [Joaquim Vilanova Assunção Neto
Conheço a produção literária de Quincas Vilaneto há muito tempo. Ainda rapazote, criei em Caxias o “Grupo Safra”, e seus primeiros quatro membros éramos nós — Quincas Vilaneto, Renato Menezes, Hélio Libório Balota (o Shao-Lin, professor de Artes Marciais metido a poeta) e eu –, todos adolescentes ou jovens que morávamos na Rua Afonso Pena, os quatro vizinhos uns dos outros, já que a rua de nome presidencial tem só dois quarteirões (e em um só dos lados…), quarteirões espremidos – e, pela localização, premiados — entre a Praça Gonçalves Dias e a Praça Vespasiano Ramos (ou Largo de São Benedito). Estávamos, portanto, ladeados espacial e especialmente por dois dos grandes poetas caxienses (um, de expressão nacional; o outro, interestadual — Maranhão e Rondônia).
Vilaneto e eu escrevemos no O Pioneiro, o saudoso semanário da cidade, que não resistiu à morte de seu diretor, o igualmente saudoso Vítor Gonçalves Neto, meu amigo, nem aos esforços de um grupo de talentosos caxienses que, por um tempo, em tocante exemplo de união e ideal, deram alguma sobrevida àquele jornal, que ainda circulou por algumas edições mais.
Depois, tempos depois, Quincas, de São Luís, me achou em Imperatriz e me pediu para prefaciar um livro post-mortem do jornalista e escritor Vítor Gonçalves Neto. E a partir daí foram se amiudando os contatos, facilitados ou estimulados pela Internet e páginas e redes e grupos sociais. A convite de Quincas Vilaneto, passei a revisar, prefaciar e editar seus mais recentes trabalhos. E é a partir disto que chegamos a este livro.
*
Antes da intimidade, a intimidação. A poesia de Quincas Vilaneto, em princípio, parece de leitura fácil, fluida. Não é — ou nem sempre é. O que parece fácil e fluido (mas não o é também…) é o processo de produção literária, em especial as escritas poéticas, do Autor. Entretanto, ele, previamente, em um de seus poemas, adverte: “É muito difícil escrever poesias” (“Sem título”).
As regulares remessas de seus poemas, que Quincas Vilaneto me faz(ia), conferiam-me a condição de ser, depois dele, o primeiro leitor de diversos desses textos. Nestes eu percebia, como nota altissonante, a recorrência do Autor a termos — palavras e expressões – metadiscursivos, metalinguísticos, metaliterários, enfim, metapoéticos. A poesia falando consigo — ou de si — mesma. O poema conversando com seu próprio umbigo, no espelho. O poeta colocando nas próprias casas os respectivos botões poéticos.
Se Quincas Vilaneto antecipa que não é fácil escrever poesias, imagine só escrever metapoesia(s)… Mas Quincas escreve — e ainda quero achar que ele, um afilhado das Musas, o faz sem dificuldade, sem desespero, sem noites ou manhãs ou tardes de pestana, insone…
Um dia, não me contendo com o (e)terno retorno aos termos, aos versos, aos poemas autorreferenciados, disse ao Quincas Vilaneto que os temas mais presentes em sua obra (Caxias e a metapoesia) deveriam merecer um livro… e o baita Poeta aderiu de modo positivo e operante. Disse sim e já foi fazendo mais poemas…
Para reconhecer a cidade natal ou a metalinguagem na obra vilanetiana não precisa que da primeira à última linha seus poemas se estejam impregnados ou emprenhados de construções metapoéticas ou de (ex)citações, odes e elegias acerca das características, das acontecências ou da toponímia caxienses. Quincas faz versos gráficos, não cartas geográficas. O Poeta sabe quando dar nomes — e, muitas das vezes, por um pedaço da casca se pode saber de que árvore se trata…
De qualquer modo, o uso regular de termos, digamos, metalinguísticos acrescenta uma dicção própria aos poemas. A regularidade desses termos em Vila Poesia é tal que os oitenta e cinco poemas, mais um quarteto epigráfico, mais a introdução do Autor estão grávidos de quase uma vintena de palavras e expressões que, somadas suas incidências — umas mais, outras menos vezes – chega-se ao total de quase duzentas menções metalinguísticas, metaliterárias, metapoéticas. São palavras e expressões (e suas flexões) como “escrever”, “escrita”, “fazer poético”, “transpor para o papel”, “verso”, “verbo”, “metáfora”, “declamar”, “papel”, “letras”, “leitura”, “livro”, “dicionário”, “língua” / “linguagem”, “elegia” e o trio “poeta” / “poesia” / “poema” (com quase setenta menções, em conjunto) e a (ex)citadíssima “palavra”, também com cerca de setenta menções.
Portanto, sem qualquer reparo, não há como não reparar nessa sadia constância lexical, glossográfica, logotemática. (Ajuntem-se a palavra “silêncio” e alguns de seus tempos verbais e flexões, que somam mais de sessenta incidências no corpus deste livro — todos elas, mais que vocábulos, são uma (in)vocação, uma necessidade do mister, mistério e modus (faciendi) poético. Se o lúcido e lúdico mato-grossense Manoel de Barros (1916-2014) usa a palavra para compor seus silêncios, Quincas Vilaneto utiliza o silêncio para compor suas palavras…).
Exemplos — belos exemplos — de metapoesia são encontradiços nesta obra vilanetiana. Tomem-se, citem-se os nove primeiros versos do poema “Desdita”, em que o Poeta responde a reiterado e secular questionamento acerca da utilidade da poesia:
“Quem disse que a poesia é inútil
a ponto de recusar do seu ensinamento?
Como provar a sua engenhosidade
e salvá-la da inutilidade, fuçando corações?
A impressão que eu tenho, quando a encontro,
é a de que ela me possui
e isso significa que a sua presença,
me faz dar luz às palavras
e salvá-las do silêncio.
[…].”
Duvidar da utilidade e, mais que isso, da necessidade da poesia é duvidar da humanidade — seja o coletivo das pessoas, seja o conjunto dos sentimentos humanos. Quincas Vilaneto soma sua voz e resposta a esse nonsense pragmatista. Relembre-se a estúpida pergunta de um juiz de Leningrado (hoje São Petersburgo, Rússia), em fevereiro de 1964, em processo contra o poeta Josef (ou Iossif) Brodski: “Qual é a utilidade de seus ‘assim chamados’ versos?”
Quem formula uma indagação dessas não está (senti)mentalmente aberto à resposta — qualquer uma — que lhe for dirigida. Resultado: Brodski saiu dali pra cadeia, onde ficou preso por quase um ano, acusado de “parasitismo social”. Exilou-se nos Estados Unidos, escreveu livros, deu aulas, recebeu título de doutor… e ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1987. Pois é: poesia serve também para isso: ampliar, elevar nosso nível estético, artístico, crítico, humanístico e ainda ser reconhecido e ganhar prêmio mundial, concedido por quem não faz concessões à obtusidade e ao obscurantismo.
Mais um exemplo da poesia metapoética de Quincas Vilaneto:
“O poema não sossega — passado o susto
teima em vazar de mim
e volta quase sempre de madrugada
como se nada tivesse acontecido.
Nele, há um desertor
que se nega desprender-se
da solidão encomendada
por palavras ainda não escritas.
[…].”
Como se lê, apesar das ocorrências, do ambiente, contexto etc., a poesia termina mesmo por sair é do poeta, é deste que o poema “teima em vazar”. Afinal, se é poeta, está prenhe de poesia… – potencial e/ou aparentemente.
Sobre a cidade, Quincas Vilaneto também a (en)cantou: em pelo menos uma dúzia de poemas traz nomes de pessoas, lugares, negócios, acontecimentos… Uma Onomástica caxiense mais duradoura que os nomes de certas ruas e logradouros locais…
Vila Poesia torna-se agora referência para os que quiserem andar pela Princesa do Sertão com sentimentos, da infância à maturidade. Bem-vindos à Praça Gonçalves Dias, ao rio Itapecuru, ao Alto dos Negros, ao pirão de parida e ao moque da Dica, ao Riacho do Ouro e à lama (medicinal) de Veneza, ao Morro do Alecrim e seu Mirante da Balaiada, às igrejas Catedral (Nossa Senhora dos Remédios) e São Benedito, à loja Matoense e ao bar do Cantarele, ao colégio Silvandira Guimarães, às ruas Aarão Reis e do Cisco, às almas poéticas de Déo Silva e Cid Teixeira de Abreu…
E se Vila Poesia não é — et pour cause… – um “guia” completo da cidade, seu Autor o é. Chame pra conversa o Quincas Vilaneto e ele se derramará todo e lhe mostrará o “caminho do rio”, onde “o sol passeia / com os que têm sede” (“Com o tempo”). O roteiro será longo e agradável, pois, para o Autor, Caxias é “Mãe querida”, e “[…] não há em ti / nada que eu não reconheça / e tudo o que sou e tenho / vivemos juntos para sempre” (“Ser caxiense”). Com elevada caxiensidade, o Poeta proclama, como canino citadino que mija em postes para demarcar território: “Foi aqui que nasci / herdeiro dos teus becos / […]” (“Herança”).
Entre as inumeráveis utilidades da poesia, este livro revela uma: dar vida. Sim, no poema “Como tem que ser”, o Autor anda de braços com uma estátua que anda…
“[…]
como se passeasse na Gonçalves Dias
que no fim da tarde me espera
e dou de cara com a estátua
que faz parte de minha vida
e constantemente caminhamos juntos
[…].”
Mas há um inafastável passeio poético, do qual a obra é guia e o próprio ambiente. Por exemplo, em “Assim era o meu Itapecuru”:
“[…]
as lavadeiras incitam as águas
como quem vive a luxúria das carícias
[…]”.
Em “Ausência”, esta se junta à saudade e ambas
“[…]
Servem a mesma dose de cicuta
como se fosse vinho e saem
fazendo a higiene da boca para beijar
a rosa depois de ter perdido o espinho.”
Em “Poema invocado”, além do resgate e da beleza do sentido informal, particular, de “invocado”, o Poeta, esta poundiana “antena da raça”, deixa-se entrever com sua “atenção integral”, na expressão de McLuhan, e, em relação aos fatos, atualizado e atualizando, manda ver:
“[…]
Mas os fatos e as provas
não valem mais nada!
A corrupção não é punível,
a justiça desmaterializou a verdade.
[…].”
Assim segue o Poeta, dizendo das coisas de sua terra e dos casos ímprobos nela e além dela: “[…] / Vou matando a saudade, / enquanto o tempo não me mata.” (“Coisa minha”)
Poetizando sobre a cidade, Quincas Vilaneto traz para sua companhia quem a ela tanto dedicou talento e sentimentos: além das menções a Cid Abreu e Déo Silva, cita diversas vezes as palmeiras e o sabiá de Gonçalves Dias, ou a tijubina de Carvalho Júnior, estes dois últimos tão distantes, temporalmente, entre si quanto tão distintos e juntos poeticamente no amor à terra natal…
Uma outra dupla que a memória vilanetiana trai e traz é o mineiro Carlos Drummond de Andrade e o pernambucano João Cabral de Melo Neto. Pelas vias da absorção na leitura e da mimese na literatura, Quincas Vilaneto nos lembra de Drummond e seu “Poema de sete faces”, o texto inicial de seu livro (inicial) Alguma Poesia, de 1930: “Quando eu nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida. / […]”. No igualmente primeiro poema desta obra, Vilaneto escreve: “Quando nasci, escapei por um triz / à procura do destino / […]”.
Em 1966, João Cabral de Melo Neto publicou A Educação pela Pedra, que trouxe o famoso poema “Tecendo a manhã”:
“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
[…].”
Em seu poema “Esperando a hora”, Vilaneto também canta de galo — galo e bem-te-vis, pois em seu terreiro há mais aves e pássaros como “Nosso céu tem mais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores”. Quincas Vilaneto escreve, bela e evocativamente:
“Um bem-te-vi canta no fio,
outro, ao longe responde
de um longínquo endereço
— sentindo-se correspondido.
De pé no terreiro, o galo repete,
as mesmas notas de desassossego
que insistem em anunciar
— que ainda é cedo,
para que nos venham acordar.
[…].”
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Guia local, repertório sentimental, poesia literal e literariamente poética, este livro reitera, amplia e eleva o lugar de Quincas Vilaneto na poesia caxiense e maranhense. O Autor não liga pra isso. O que lhe interessa é cantar sua cidade e encantar(-se) com a poesia.
Porque neste livro, a partir do título, “Vila” é a cidade-inspiração, e “Poesia” é a do filho inspirado — Quincas Vilaneto.
Parabéns, Conterrâneo, Amigo, Confrade.
Edmilson Sanches
[email protected]
2 respostas
Quincas, foi meu parceiro de stand, na primeira feira do livro de São Luís, quando lancei o livro Algodão: Ouro Branco. Saúdo o nobre confrade Edmilson Sanches, por suas importante lavras.
PARABÉNS pela apresentação de Quincas Vilneto. Edmilson sempre traz boas iniciativas.
É um orgulho para nós do INSTITUTO INTERNACIONAL CULTURA EM MOVIMENTO-IICEM contarmos com o talento e a sensibilidade do escritor marenhense,Edmilson Sanches(DhC),no quadro de membros efetivos.
Abraço fraterno,Angeli Rose(Presidente IICEM)