sábado, 22 de março de 2025

TRADIÇÃO AUTORITÁRIA E O FASCÍNIO PELA COLABORAÇÃO PREMIADA

Publicado em 24 de janeiro de 2024, às 5:56
Fonte: Paulo Thiago Fernandes Dias – Advogado. Professor universitário (CEUMA e UEMASUL). Pesquisador-líder do grupo de pesquisa “Instituições do Sistema de Justiça e Dignidade da Pessoa Humana” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5436723442142911). Expert na comunidade jurídica “Criminal Player”. Doutor em Direito Público (PPGD/UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PPGCRIM/PUCRS). Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (UGF). Bacharel em Direito (ICJ/UFPA). Instagram: @paulothiagof
Close-up of a person's hand stamping with approved stamp on approval certificate document public paper at desk, notary or business people work from home, isolated for coronavirus COVID-19 protection. Imagem: FreePik Premium.

Conforme amplamente noticiado pelos veículos de imprensa, Ronnie Lessa, apontado como suposto autor dos disparos que executaram Marielle Franco e Anderson Gomes no dia 14/03/2018[i], no centro da capital do Rio de Janeiro, teria celebrado acordo de colaboração premiada com a Polícia Federal. Referido acordo estaria na pendência de homologação ou já teria sido homologado pelo Superior Tribunal de Justiça[ii]. Segundo o site de notícias Intercept, Lessa teria apontado Domingos Brazão, Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, como o mandante dos assassinatos de Marielle e Anderson[iii].

Como nada foi confirmado pela Polícia Federal, pelo Ministério Público Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, as redes sociais se tornaram o palco preferido para os mais diversos devaneios, festejos e acusações. Resumindo: as já tóxicas redes sociais ganharam um tempero adicional. Com isso, políticos de extrema-direita alimentaram a sua base de fanáticos, apontando que as mortes teriam sido encomendadas por políticos de Esquerda. Também não faltaram aqueles que resgatassem fotos de Domingos Brazão com o Senador Flavio Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2022[iv].

Uma coisa é certa: a chamada colaboração premiada, indiscriminadamente tratada como delação premiada por inúmeros veículos de imprensa[v], exerce um fascínio sobre uma sociedade fortemente forjada por valores autoritários e antidemocráticos como a brasileira.

No caso acima (Ronnie Lessa), bastou a notícia da suposta homologação de uma colaboração premiada[vi] para que toda uma crença coletiva fosse criada em prol da possível definição do nome do principal mandante dos assassinatos de Marielle e Anderson.

Mesmo que tenha sido usada e vendida como uma grande inovação do Processo Penal brasileiro pelo lavajatismo, a colaboração premiada (adotando a expressão da Lei das Organizações Criminosas) possui longa existência, inclusive na história brasileira, não devendo ser confundida com nada que venha a ser tido como evoluído ou até mesmo intelectualmente aprimorado. Todo o oposto.

“A delação premiada não se constitui em um recurso moderno do processo penal, assim como não se apresenta como repercussão de nenhum avanço especial havido na persecução criminal. Em verdade, a delação premiada sempre representou, juntamente com a prática da tortura, uma das ferramentas fundamentais dos processos arbitrários, em especial os medievos de índole inquisitorial” (Tasse; 2006, p. 2-3)[vii].

Obviamente, não cometo a leviandade intelectual de afirmar que nada mudou, por exemplo, do julgamento de Joaquim José da Silva Xavier (o Tiradentes)[viii] para o instituto consagrado na Lei nº 12850/2013 (Lei das Organizações Criminosas). Mudanças foram feitas nesse meio de obtenção de prova. Mas nenhuma alteração foi capaz de modificar a natureza autoritária da colaboração premiada, destacadamente no caso de investigado/acusado que se encontra preso.

“A prisão preventiva também tem sido distorcida para forçar acordos de delação premiada (mostrando a outra dimensão da crise a seguir tratada, da [in]eficácia da liberdade no processo penal), na seguinte (dis)função: delata para não ser preso; ou delata para ser solto; ou, ainda, é solto para delatar. E mais, em processos como esse, as penas aplicadas aos que não fizeram ‘acordo’ são estratosféricas, evidenciando que se criou uma nova função para a pena privativa de liberdade: ao lado das funções de prevenção geral e especial, temos agora a prevenção ‘negocial’. A mensagem é muito clara: ou colabora e aceita o perverso negócio, ou se prepare para uma pena exemplar. É a comprovação de que o processo penal acabou se transformando em uma perigosa aventura para quem não estiver disposto ao acordo” (Lopes Jr, 2019, e-book, pos. 19)[ix].

Assim pontuado, e voltando ao caso mencionado ao norte, a suposta colaboração premiada formulada pelo preso Ronnie Lessa, ainda que homologada pelo Judiciário, possui natureza jurídica de prova? A resposta só pode ser negativa.

A colaboração premiada possui natureza de meio de obtenção de prova[x], dado que ela configura uma das atividades investigativas desenvolvidas, no caso Lessa, por autoridades distintas do Judiciário, para fins de identificação das fontes de prova. Na feliz expressão empregada por Guilherme Dezem, trata-se de um meio de pesquisa de provas para o processo penal ou para a investigação preliminar (ao processo)[xi].

“Meio de obtenção de prova: ou mezzi di ricerca della prova como denominam os italianos, são instrumentos que permitem obter-se, chegar-se à prova. Não é propriamente ‘a prova’, senão meios de obtenção. Explica MAGALHÃES GOMES FILHO que os meios de obtenção de provas não são por si fontes de conhecimento, mas servem para adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória, e que também podem ter como destinatários a polícia judiciária. Exemplos: delação premiada, buscas e apreensões, interceptações telefônicas etc. Não são propriamente provas, mas caminhos para chegar-se à prova” (Lopes Jr, 2022, e-book, pos. 484)[xii].

Em apertada síntese, existe uma distância considerável entre a homologação de uma colaboração premiada pelo Judiciário e a eventual demonstração, comprovação probatória da prática de uma infração penal por alguém. Especialmente, quando essa homologação precede a deflagração do processo penal, pois conforme se abordou noutra oportunidade, o conceito de prova exige a participação e a presença das partes e do órgão julgador, em respeito ao devido processo legal.

Com outros dizeres, a eventual formalização do termo de colaboração premiada de Lessa consistirá em um dos instrumentos de pesquisa adotados pelo Estado para a apuração de todas as responsabilidades penais dos envolvidos com as covardes e absurdas execuções de Marielle e Anderson.

Do alto da minha inocência, espero que a investigação preliminar e o eventual processo penal sigam sem espetacularizações, lavajatismos e outras afrontas ao Estado Democrático de Direito.

MARIELLE, PRESENTE!


[i] Fonte: https://www.cartacapital.com.br/justica/o-que-se-sabe-e-o-que-falta-ser-esclarecido-no-assassinato-de-marielle-franco/

[ii] Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/01/23/domingos-brazao-nega-ligacao-marielle-franco-ronnie-lessa-negocia-delacao.htm

[iii] Fonte: https://www.intercept.com.br/2024/01/23/domingos-brazao-ja-matou-vizinho-e-foi-preso-por-corrupcao-ele-e-o-homem-apontado-como-mandante-da-morte-de-marielle/

[iv] Para conferir, basta acessar a trend Marielle no X: https://twitter.com/search?q=Marielle&src=trend_click&vertical=trends

[v] Ilustrando: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/01/apontado-como-assassino-de-marielle-ronnie-lessa-firma-acordo-de-delacao.shtml

[vi] O termo “acordo de colaboração premiada” será evitado neste escrito, em função da incompatibilidade que há entre o conceito jurídico de negócio e a situação relacionada à figura do investigado ou acusado preso (seja ele quem for). Vale ressaltar que Ronnie Lessa está preso desde 2019, o que fulmina, por completo, a possibilidade de que sua colaboração/delação tenha decorrido de ato voluntário de sua parte.

[vii]Fonte:http://www.regisprado.com.br/Artigos/Adel%20El%20Tasse/Dela%C3%A7%C3%A3o%20premiada.pdf

[viii] Não são situações idênticas: https://revista.ibraspp.com.br/RBDPP/article/view/220/160

[ix] LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. E-book.

[x] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Processo Penal e Execução Penal. Salvador: Editora Juspodivm, 2022, p. 831.

[xi] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. São Paulo: Thomson Reuters brasil, 2020, p. 589.

[xii] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraivajur, 2022. E-book.

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